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Aprender a berrar em português ou como falar de 6X1

Texto de Antonio Djalma Braga Junior e Leonardo Origuela

No cenário cinematográfico dos últimos dias, o musical Wicked ganhou o merecido destaque. Do universo do Mágico de Oz, a biografia da bruxa do oeste compõe o enredo do filme, explicando os motivos que a levaram ser tão má. Sem a intenção de qualquer spoiler, Elphaba (interpretada por Cyntia Erivo) é a nada discreta aluna de uma escola que inicia seus alunos na arte da feitiçaria; ao lado dela, uma amizade incomum com Glinda (interpretada por Ariana Grande). A cor da sua pele e suas habilidades incomuns fazem-na, desde o primeiro momento, o centro das atenções. Entre os vários temas suscitados pela trama, ocupa especial lugar a pacífica convivência entre animais humanos e não-humanos. A primeira aula da nova turma é ministrada pelo professor Dillamond, que soma ao seu título de doutor o fato de ser um bode. Contudo, o último “privilegiado” professor entre os não-humanos que adquiriram a habilidade de falar.

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Há uma discussão social no mundo de Oz sobre a dignidade dos animais em ocupar espaços sociais e aprender a mais poderosa arte da feitiçaria humana: a linguagem. Em síntese, o quase emérito Dr. Dillamond ganha uma aposentadoria forçada, aos berros, e um espaço bem gradeado para viver os seus últimos dias. Subitamente feita sua substituição, o novo professor faz uma temerária demonstração do lugar dos animais: as jaulas os protegerão de se manifestar na linguagem humana, diz ele.

A crítica cinematográfica, amplamente dividida, expôs as mais diversas opiniões e até acusou a produtora de fazer uma antropomorfização barata, dando aos animais não-humanos o direito de falar e, mais que isso, manifestar-se. Comentários desse tipo imediatamente se inscrevem em uma trajetória muito bem consolidada de afastamento da humanidade de sua imagem e semelhança com a natureza. O animal que na evolução não ganhou chifres, garras ou dentes afiados, mas aprendeu a falar, precisa salvaguardar seu recurso mais potente para se proteger dos outros animais. De fato, esses outros animais, nossos primos um pouco distantes, não desenvolveram a capacidade de falar. Contudo, foi apoiado nesse fato que o bicho-homem criou para si o elevado valor das “coisas humanas”. Mas, e as coisas humanas, como vão?

Não bastasse a habilidade de falar – em um cenário nacional em que 7% da população, 11,4 milhões de pessoas (Censo 2022), é capaz de se comunicar, mas não ler ou escrever –, agora é ainda necessário gritar que a própria vida tem valor. Nas últimas semanas foi a vez da classe trabalhadora “berrar” o seu valor. A tensão política criada pela discussão sobre a jornada de trabalho 6×1 encontrou uma bifurcação característica desse modelo de trabalho: de um lado os nobres patrões revoltados com a política brasileira que quer conceder ao trabalhador tanto tempo ocioso e, de outro, o trabalhador exausto, com medo de perder o seu emprego no caso de se manifestar animado com a esperança de mais um dia de respiro em sua semana.

A deputada Erika Hilton, líder do Psol na Câmara dos deputados, é quem assina a autoria e dá o corajoso pontapé desse debate. A opinião de seus colegas, sem qualquer surpresa, se divide entre os que se sensibilizam com a vida dos trabalhadores e trabalhadoras e afirmam a importância de um tempo para o descanso e profissionalização e aqueles que acreditam até que o trabalhador mesmo é quem precisa “decidir” se quer vagabundear por mais um dia ou produzir mais “até à exaustão, como fazem os japoneses” ou descansar no sétimo dia “como está na bíblia”. Na prática, a decisão dos trabalhadores e trabalhadoras do nosso país é se optam pela exaustão da panfletagem dos seus currículos por dias, no sol a pino, ou se preferem se exaurir seis dias na semana para garantir a comida em suas mesas. A decisão fica fácil.

O debate está sendo muito importante para que a população perceba aquilo que pensam os seus representantes eleitos. Nós, trabalhadores e trabalhadoras, que os contratamos para uma jornada 3×4, temos agora que nos submeter a uma de 6×1, recebendo, claro, bem menos que a metade dos seus salários. Mas, no que se refere à seriedade da matéria, é imprescindível acompanhar as pesquisas, analisar com cuidado as diversas propostas de escalas e os seus impactos em vários âmbitos, avaliar os planos-piloto que já se realizaram e, claro, ouvir a voz dos trabalhadores. O que se nota, sobretudo na postura de alguns parlamentares e partidos políticos que se negam discutir e até mesmo assinar a proposta, é que mais uma vez a vida dos patrões tem maior valor que a vida e saúde daqueles que eles empregam.

À diferença do universo de Oz e de modo ainda mais trágico, não é mais sobre “saber falar”, mas sobre “saber pagar”. É preciso, portanto, aprender a berrar em português, porque somos animais dignos, e aqui no solo brasileiro precisamos fazer notar a voz dos trabalhadores e trabalhadoras. Não queremos jaulas, que transformam o nosso trabalho em um peso. Queremos que ele garanta uma vida bem vivida pelas famílias brasileiras, pelos homens e mulheres desse país que enfrentam trajetos, transportes, pouco tempo com suas famílias, jornadas duplas e a falta tempo para o lazer e cultura. Queremos berrar o nosso desejo de ter tempo para viver e ter as condições mínimas de ser feliz.

*Antonio Djalma Braga Junior, filósofo e historiador. Doutor pela UFPR. É Professor Universitário, Diretor do Instituto Cidade Smart, fundador da Planejando Sonhos e Consultor na área educacional.

* Leonardo Origuela, filósofo e especialista em Semiótica e análise do discurso e língua portuguesa, redação e oratória. Atualmente é mestrando em Filosofia pelo programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-PR.

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