Diário de Curitiba

Dolorida, incômoda, mas necessária – crítica de Prima Facie

FOTO: ANNELIZE TOZETTO

Entrar no teatro sem saber exatamente o que esperar pode ser uma experiência curiosa. No caso de Prima Facie, foi também surpreendente e intensa. A peça começa de forma envolvente: a advogada Tessa nos conduz por sua rotina com inteligência e até um toque de humor. No início, até ri algumas vezes. Mas, aos poucos, fui sendo enredada, assim como ela faz com as testemunhas no tribunal, e a tensão foi se acumulando até atingir o ápice.

O grande mérito do espetáculo está na forma como somos colocados dentro da mente da personagem. A construção do texto e da atuação intensa de Débora Falabella faz com que os espectadores vejam e sintam tudo junto com ela, da autoconfiança inicial ao momento em que tudo se despedaça. Sentimos sua dúvida, medo, indignação e desespero. E quando nos damos conta, estamos completamente imersos na sua jornada.

Clique aqui agora e receba todas as principais notícias do Diário de Curitiba no seu WhatsApp!

 

 

 

Mas tão impactante quanto essa construção psicológica é a crítica ao sistema judiciário. A peça expõe de forma crua e necessária a maneira como o sistema trata as vítimas de violência sexual. Não há concessões nem amenizações. O que vemos em cena é um processo que não foi feito para acolher, mas para questionar, desgastar e desacreditar. A vítima se torna ré. Suas palavras são viradas contra ela. Seu sofrimento, minado por contradições forjadas no interrogatório.

Uma das passagens mais impactantes vem de uma lembrança da personagem sobre a faculdade de Direito. No primeiro dia de aula, um professor diz: “Olhe para a direita, olhe para a esquerda. Um de vocês não vai se formar.” Até aí, nada além de um discurso típico de universidades. Mas, mais adiante na peça, essa mesma frase retorna com um peso esmagador: “Olhe para a direita, olhe para a esquerda. Uma de vocês.” Dessa vez, o contexto é outro, os números alarmantes que indicam que uma em cada três mulheres será vítima de violência sexual. Um golpe seco, impossível de ignorar.

O texto de Prima Facie é brilhantemente construído. Ele nos faz atravessar todas as camadas desse processo: desde o choque inicial da vítima até a dúvida sobre si mesma, a culpa, o medo de denunciar e, se ela decidir seguir adiante, a violência institucional que a espera. O que acontece nas delegacias, nos tribunais, nas salas de audiência, nos olhares de desconfiança. O julgamento da sociedade pesa tanto quanto o jurídico.

Ao final, saí com um nó na garganta. Não é uma peça confortável. Ela é dolorida. Ela incomoda. Mas é justamente por isso que é tão necessária. E o público sentiu isso. Era possível ouvir pelo teatro sinais de que eu não fui a única a se emocionar. Os aplausos de pé, demorados, intensos, mostraram que ninguém saiu indiferente. Prima Facie cumpre com maestria o papel da arte de provocar e refletir.

Sair da versão mobile