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Crônica do Mendigo

Eu fui um homem de biblioteca e festas, desses que corrigem erro de concordância em conversa de bar – a minha esposa dizia que meu amor pelas palavras só não era maior do que minha sede por cachaça. Lembro-me bem daquela terça-feira; não era a primeira madrugada que eu voltava cambaleante ao edifício amarelado na parte mais sombria da Rua Saldanha Marinho, mas era a primeira em que a maçaneta não abria.

A minha mulher partira já havia um tempo – e não fiz força para impedir – levou apenas os vestidos e o cheiro de alecrim que enganava a umidade permanente do apartamento 402. O álcool tornou-se meu único parente. O meu emprego durou mais umas semanas de ressaca, faltas e desculpas. Após meses de aluguel atrasado, o síndico, que me devia livros e paciência, trocara a fechadura a mando do senhorio. Restou-me o retrogosto do álcool barato e a vizinhança de pombas, que, como eu, sobrevivem às migalhas – elas, ao menos, tinham seus ninhos.

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Ninguém chora na Praça Rui Barbosa, exceto os bêbados e os fantasmas. A partir dali, virei ambos. Ali, entre ônibus que chegavam atrasados e corpos que nunca chegavam a lugar algum, ouvi a primeira proposta: “Doutor, quer uma pedra? Dá uma animada!” O pacote era minúsculo, da mesma cor do meu paletó barato; o isqueiro, vermelho. O estalo do primeiro pito de crack não foi explosão – foi um abraço. Um abraço enérgico que me arrancou do torpor, um calor que não vinha de nenhum sol. Durou pouco, mas o impacto foi eterno. Senti o cérebro lacrado à cera quente: tudo era possível, inclusive a mentira de que eu dominava aquele milagre profano. 

Erudição não salva ninguém, descobri. Depois de incontáveis recusas, aceitei, enfim, entrar na van da FAS. Além do trajeto longo, confiscaram minhas pedras quando precisei fumar. A noite estava cortante; aceitei o teto, mas prometi nunca mais voltar. Na manhã seguinte, tentando retornar ao centro, recitei Virgílio em latim para um taxista, oferecendo versos em troca da corrida. Ele me tomou por louco, levantou o punho, e eu corri. O saber, antes armadura, converteu-se em dívida; diplomas não alimentam vícios, apenas justificam a arrogância de tê-los.

Quando a fome apertou — fome de estômago mesmo, não a outra — a esmola tinha que ser racionalizada. Na semana de bolsa-família, com a documentação em dia, tudo corria mais tranquilo; fora disso — seja por não ser semana de pagamento, seja por ter perdido o meu RG — a questão virava matemática básica: se eu conseguisse o café das freiras, uma refeição na mesa solidária e um prato de uma alma caridosa na madrugada, bastavam, em média, dez abordagens bem-sucedidas para manter três pedras por turno. Descobri horários, calibrei discursos, aprendi que olhar para os sapatos das pessoas revela a generosidade provável. Os de couro gasto dão mais do que os de verniz. É ciência empírica: miséria reconhece miséria. A esmola era o meio, a pedra o fim.

O tráfico, como a sereia de Ulisses, não força; seduz. “Chega aí, Doutor” – o apelido ficou, mesmo após eu perder o paletó e a dignidade – “vende dez, fuma três.” Sabedoria de Sócrates às avessas: conheço que nada sei, mas finjo que sei vender. Recebi vinte pedras na primeira noite, voltei com dinheiro de dez. O cálculo não fechou, e o meu novo diretor — menino de boné que poderia ter sido meu aluno — cobrou-me um dente. Não reclamei: a própria boca é redundante quando só serve para inspirar fumaça.

Furtar, então, foi mero corolário. Uma bolsa numa cadeira de lanchonete. Minhas mãos, antes dedicadas a folhear páginas e a gesticular em aulas, agora ágeis na arte da subtração. O coração disparado não era de culpa, mas de adrenalina e da antecipação da recompensa. A lógica do vício é implacável: não há moral, apenas a necessidade.

A faca entrou na narrativa como entra a chuva em Curitiba: sem aviso e em diagonal. Competíamos, eu e outro náufrago, pelo mesmo ponto. Ele tinha uma faca, mas não era bom com ela. Eu fui melhor. Após um empurrão, coletei do chão, cravei o metal em seu ombro. O aço encontrou osso, e o estalo lembrou-me o primeiro pito. O outro cambaleou, mas não caiu, só fugiu; o que caiu foi a barreira final entre mim e a indiferença. Anotei mentalmente: agressão rende respeito, respeito rende espaço, espaço rende clientes.

Pouco tempo depois, um terceiro jogador decidiu roubar-me o estoque fiado do patrão. Puxei a faca, ouvi o ar sair-lhe do peito num mugido curto. Nada épico, nada shakespeariano — apenas carne cedendo. O cadáver ficou sobre as pedras históricas do Largo da Ordem, e as pombas que me acompanharam desde o 402 aproximaram-se, curiosas. Perto dali, fumei em silêncio, pensando em como a morte é apenas uma transição de propriedade: agora o vício pertencia a mim por inteiro, sem rivais, sem remorso.

Tentei largar tudo dezenas de vezes. Jejuei quarenta e oito horas sob a marquise do Teatro Guaíra; alucinei que os bustos dos poetas cuspiam sonetos. Aceitei abrigo na Casa de Passagem, mas o cheiro do café no portão me lembrava o isqueiro — cafeína da alma, diziam os quase-alguém — eu queria fugir antes do crepúsculo. Amarrei os pulsos às grades da Catedral, recitando trechos da “Ética” de Spinoza, até que os guardas municipais me soltaram o cassetete. Tentei contatar minha família no interior, fazer bicos de tudo que é tipo. Cada tentativa provou apenas uma tese: crack é a antítese do livre-arbítrio; é demiurgo ciumento, reescreve teoremas morais em fumaça que sobe e some.

Hoje, sentado no mesmo degrau onde comecei a morrer, após anos de empáfia e desprezo por tudo que se dizia sagrado, finalmente compreendo que o inferno existe e é portátil, acoplado aos meus pulmões. Cada tragada era um cântico de louvor a demônios impacientes — anjos caídos que cobram juros compostos em carne viva. Neguei Deus em latim polido, mas Ele continuou escrevendo a réplica nas cicatrizes que cultivo no meu corpo. Agora leio: o fogo não é metáfora; é usura eterna, debitada pito a pito.

Descubro também que talvez seja tarde demais para mim — o limiar entre carne e cinza já se confundiu—mas não para os que ainda respiram sem faiscar. Vejo legiões de futuros mortos-vivos vagando entre as mesmas bancas de pastel e ônibus suados, prestes a aceitar o primeiro abraço quente da pedra. Uns especialistas decretam que só serei redimido se ganhar um CEP; outros preferem espancar meu colchão de papelão como se demônios obedecessem à autoridade. Ambas as turmas não sabem o que fazem, sequer sabem o meu nome: moradia sem arrependimento vira covil; violência só aduba ressentimento.

Sem identificação, sem nome, sem história, não há dignidade nem livre-arbítrio para escolher outro rumo. A única saída — incômoda, antiquada — começa devolvendo identidade e desemboca num gesto que a gramática laica não descreve melhor que isso: conversão – metanoia, arrependimento. Esse giro interior não se compra com aluguel social nem se impõe com cassetete; e em toda probabilidade só acontecerá de joelhos, quando um Pai-Nosso partilhado devolve a cada um o direito de ser chamado pelo próprio nome. Enquanto ainda houver um sopro entre lábios queimados, o céu continua oferecendo habeas corpus. O coração precisa mudar de dono antes que as paredes mudem de cor. 

Se alguém, amanhã, cruzar meu corpo estendido e sentir o fedor sulfuroso que exalo, lembre: não é o morador de rua que fede; é o subsolo que já começa a respirar por ele. Salvem-nos antes que o enxofre se torne idioma corrente. Salvem-nos do fogo que atiçamos nós mesmos. Salvem-nos, sobretudo, antes que entendamos tarde demais que os demônios sempre cobravam aluguel—e, afinal, entregamos as chaves com gratidão.


Por Rodrigo Marcial

Vereador de Curitiba

* Ficção fielmente costurada em meses de escuta: pessoas em situação de rua e quem lida com eles — Ministério Público, Igreja, comércio, associações, gestão pública, assistência social e polícia.

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