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A pátria de chuteiras (e de surtos cromáticos)

O Brasil não é para amadores — e, cada vez mais, parece também não ser para estilistas. Bastou sair a notícia de que a segunda camisa da Seleção Brasileira, a tradicional azulzinha, poderia ser substituída por uma camisa vermelha (com detalhes dourados e símbolo do Jordan enterrando a bola) para o país entrar, mais uma vez, em combustão simbólica.

“É um crime contra a história!”, protestou Galvão Bueno, emocionado, num vídeo entre lembranças de Romário, Copas do Mundo e dedicatórias com autógrafo. Com razão — e com drama. Porque, para muita gente, a camisa azul não é só uma camisa. É o “manto de Nossa Senhora” improvisado às pressas em 1958 para a final contra a Suécia, quando a amarelinha coincidia com o uniforme adversário. É o gol de cabeça de Romário em 94. É a virada épica contra a Holanda. É, enfim, um pedaço de história costurado com suor, fé e mitologia nacional.

Mas vamos com calma.

Até o momento, a CBF não confirmou oficialmente a mudança. O boato veio de um site especializado, o Footy Headlines, que cravou: vem vermelho aí, em março de 2026, num amistoso pré-Copa. E pronto. Foi o suficiente para iniciar uma nova Guerra das Cores.

A direita mais radical surtou. O deputado Zé Trovão (PL-SC) protocolou um projeto de lei para obrigar todas as representações oficiais do Brasil — de delegações diplomáticas a missões científicas — a usar apenas as cores da bandeira: verde, amarelo, azul e branco. Caso contrário, sanções, advertências e até impedimento de representar o país. É o AI-5 do Pantone.

O argumento? Patriotismo. Identidade nacional. Defesa da imagem brasileira. Mas o pano de fundo é menos nobre: desde que a camisa amarela foi sequestrada como símbolo de uma ala política, qualquer alteração de uniforme virou campo de batalha ideológica. A camisa azul seria “de todos”. A vermelha, dizem, seria um aceno à esquerda — ou, no delírio conspiratório, uma tentativa de “reconquistar” os corações progressistas que se afastaram da CBF durante a tempestade bolsonarista.

Pausa para respirar.

A Alemanha joga de branco, mesmo com uma bandeira preta, vermelha e “dourada”. A Holanda usa laranja em homenagem à família real, embora o tom não apareça na bandeira. O Japão, de vermelho e branco, às vezes veste azul. Mas no Brasil, trocar o azul por vermelho é praticamente rasgar a Constituição, cuspir no hino e incendiar a chuteira do Pelé.

O curioso é que, no fundo, todos parecem ter razão — e ao mesmo tempo, ninguém tem.

Galvão, do alto de sua história e de sua emoção legítima, fala com a alma. A camisa azul carrega memórias afetivas que não se lavam com sabão neutro. Mas a gritaria institucional, com projeto de lei e ameaças de sanção, revela um Brasil onde se legisla sobre o tecido, mas se ignora o desmonte do que está sob ele: a educação física nas escolas, os clubes de base sucateados, o futebol feminino ignorado, os atletas invisíveis.

Não é a cor da camisa que ameaça nossa identidade nacional. É o esvaziamento do conteúdo por trás do símbolo. É transformar a camisa em fetiche político. É ignorar que, hoje, há mais gente brigando por cor do que pelo que realmente importa.

O filósofo Umberto Eco dizia que os símbolos têm poder, mas perdem força quando são manipulados por excesso. É o que vemos agora: a camisa da Seleção se tornou refém de uma disputa cromática entre dois Brasis que não sabem mais jogar no mesmo time. E no meio disso tudo, a Nike (ou Jordan?) assiste, calculando quantas camisetas vermelhas vai conseguir vender com ou sem crise institucional.

No fim das contas, talvez a pergunta mais urgente não seja “por que trocar o azul pelo vermelho?”. Mas sim: por que diabos temos parlamentares gastando tempo com isso?

Curitiba efrenta enchentes e alagamentos, espera laudos de autismo, vaga em creche. O Brasil inteiro tem problemas para escalar. E tem gente no Congresso discutindo a paleta de cores da seleção como se fosse cláusula pétrea.

Se for pra preservar um símbolo nacional, que se preserve o bom senso. Porque esse, sim, anda em extinção — independente da cor da camisa.

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