Essa semana, ela completaria 91 anos. quarta-feira, 18 de junho. Mas nos deixou no ano passado, numa sexta-feira de fevereiro, aos 90. Dona Leocadia. Ou, como a gente dizia entre sorrisos e intimidades do cotidiano: Cadia.
Não era parente de sangue. Mas era como se fosse. Ou talvez fosse mais do que isso — porque há vínculos que não vêm da árvore genealógica, mas do chão dividido, da grama compartilhada e do afeto espontâneo que cresce entre casas vizinhas como cresce o manjericão nos muros baixos.
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Ela entrou na nossa vida sem saber que estava entrando. Foi quando minha esposa, ainda noiva, bateu palmas na frente da casa dela. Estávamos procurando um lugar para morar. Vimos aquele quintal com duas casinhas, uma na frente, outra nos fundos, e parecia bom demais pra ser verdade. E talvez fosse mesmo. A princípio, a resposta foi curta: “Não está pra alugar.” Mas a Cadia não era de respostas curtas.
Depois descobriu quem era a Sil, descobriu quem era a família, e resolveu confiar. Nos chamou para visitar. A casa era exatamente o que precisávamos. E assim começou a convivência. De porta com porta. De alma com alma.
Foram onze anos com ela ali — e, de algum modo, com ela aqui também. Porque a dona Leocadia não era daquelas que ficava de longe. Estava sempre por perto. Às vezes até demais, como quando bateu na nossa porta às três da manhã porque a luz do banheiro estava piscando. “Vai que pega fogo.” E lá fui eu, guiado por aqueles cabelinhos brancos e a preocupação materna que nunca dormia.
Ela era uma senhora no corpo, mas uma operária no espírito. Forte. Incansável. Capaz de passar horas arrancando mato do jardim com as próprias mãos, agachada como se fosse praticante de pilates avançado. Pintava a própria casa, cuidava da grama com zelo religioso, subia em escada com o coração da gente saindo pela boca.
Mas não era só sobre trabalho. Era sobre cuidado.
Quando Davi nasceu, ela o adotou como neto. Dava presentes, trazia biscoitinhos, danoninho, palavras doces. Tratava a Sil (minha esposa) como filha. Ligava se ficássemos fora o dia todo. Preocupava-se com a saúde, com a rotina, com as ausências. E quando a vida apertou, quando o aluguel atrasou por quase três anos, ela não cobrou. Nem uma vez. Nem um olhar torto. Nem um julgamento disfarçado de pergunta.
Apenas seguiu amando. Cuidando. Confiando.
Ela fazia parte da casa tanto quanto um pilar. Tinha que cumprimentar quando passava, senão era ofensa grave. Um aceno de longe, um sorriso, um “Oi, Dona Leocadia” — e tudo voltava ao eixo. Se não sorria de volta, era porque estava brava. E a gente já sabia.
Mas não durava. Ela tinha o coração mole. Bastava um gesto e tudo virava de novo conversa boa, história de antigamente, riso compartilhado no meio do caminho entre o tanque e as orquídeas.
Cadia era dessas pessoas que você não encontra mais por aí. Que sabe de você, que se importa com você, que te enxerga com o olho inteiro — não só com a vista, mas com a alma.
E como toda árvore boa, ela deixou raízes. A filha Dirce, o genro, os netos — gente boa, do tipo que te acolhe, que te oferece café, que te olha no olho e pergunta de verdade se está tudo bem. Moram no mesmo terreno, sem muro, um quintal interligado. Como era com ela. Como continua sendo.
A ausência Cadia é um buraco no jardim. Mas não um vazio estéril. É daqueles buracos onde a saudade se planta, e vira flor, e vira memória. A gente ainda fala com ela, às vezes. Em pensamento. Em oração. Em silêncio.
Ela viveu 90 anos e, em cada um deles, deixou sinais de quem foi. Forte. Teimosa. Generosa. Presente. Um pouco brava, um tanto briguenta, mas inteira. Muito inteira.
E agora, quando olho para o quintal que ela cuidava como quem cuida de um filho, vejo que ela ainda está ali. No verde que insiste em crescer. No vento que passa entre as janelas. No cuidado que ficou em nós — e que agora é nossa vez de passar adiante.
Cadia não era só vizinha. Era presença. Era jardim. Era amor em estado prático.
E isso, isso nunca morre.