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O menino sereno e o pequeno caos

Era uma quarta-feira fria em Curitiba. Daquelas em que até o concreto se recolhe em silêncio e o vento parece cochichar pelas esquinas. Eu e o Davi estávamos no ônibus biarticulado — o de sempre, o Pinheirinho–Rui Barbosa. Sentamos no nosso lugar cativo: o primeiro banco atrás do motorista, quase uma cabine de observação da vida. E, ali, como já virou hábito, eu comecei a observar o Davi.

Olhei para o vidro que separa o banco do motorista do resto do ônibus e, nele, vi o reflexo do rosto dele. Sereno. De touca. Os olhos acompanhando os prédios e os carros que passavam como se fossem nuvens num céu que só ele vê. Lindo, meu filho. Seriam essas cenas suficientes para eternizar a infância de alguém — se a vida permitisse pausas.

Mas o Davi, como toda criança — e como poucas —, carrega o imprevisto. Carrega o pequeno caos.

Não é todo dia, mas de vez em quando. De vez em quando o sereno dá lugar à tormenta, a calmaria vira suspense, e o cuidado se torna um campo minado invisível. É assim, por exemplo, quando o ônibus se aproxima da Estação Hospital do Trabalhador. Por algum motivo que nem ele sabe explicar, e nem eu sei entender, essa estação é um gatilho. Às vezes ele desregula. É como se algo apertasse dentro dele, como se o mundo perdesse o compasso, e ele, o chão.

E eu fico ali, como sempre: atento. Tentando antecipar o imprevisível. Como quem escuta o tic-tac de um relógio que pode ou não explodir. Mas com amor. Sempre com amor.

Davi foi diagnosticado com autismo pouco antes dos 3 anos. Desde então, nossa vida virou um aprendizado constante. Terapia ocupacional, psicologia, fonoaudiologia. As terapias ajudam. Mas não bastam. Porque não há protocolo que substitua o olhar de quem ama. Nem manual que ensine a decifrar a alma de um filho.

E ele evoluiu tanto. Ele aprendeu a nomear as emoções, a montar quebra-cabeças, a responder com ironia, a dizer “eu te amo” nos momentos mais improváveis. E, ainda assim, há dias em que tudo parece retroceder. Como agora, que ele está entrando na pré-adolescência — e junto dela, a teimosia, a contestação, o desafio. Um novo caos, com novas regras.

Às vezes é engraçado. Outras vezes, só exaustivo.

E naquele ônibus, olhando o reflexo dele no vidro, pensei em como é viver com o coração em alerta. Não o alerta do medo, mas do amor que não dorme. Do amor que monitora, interpreta sinais, antecipa respostas. A cabeça vira um painel de controle. Um oráculo. Um campo de possibilidades. Um “e se” eterno.

E foi ali, naquele banco gelado do biarticulado, que me veio à mente um filme que vi há anos: Amor pelo Jogo. Um menino com um problema ósseo, preso a aparelhos nas pernas, sonha em ser jogador de beisebol. Mas o pai, pastor, quer que ele seja pregador. E o menino insiste no sonho. E o pai insiste na Bíblia.

Até que, um dia, o pai prega sobre Davi — o pastor de ovelhas que ninguém via, mas que Deus enxergou. Porque, diz o pai, Deus viu o que ninguém mais via: o coração.

Queria ter esse olhar. Queria ver o Davi para além das crises, das teimosias, das estações de ônibus que desregulam. Queria ver o filho que Deus vê. O que é inteiro mesmo quando está quebrado. O que é forte mesmo quando grita. O que é sereno mesmo dentro do caos.

E eu sei que tem gente que não crê. Que Deus, para muitos, é abstração, é mito, é metáfora. Mas, para mim, é sustento. É esse fôlego que me faz atravessar a cidade num ônibus lotado com um menino que às vezes explode, mas que também abraça como quem ancora.

Porque Davi não é só meu filho. É meu espelho. Meu teste. Meu milagre cotidiano.

Ele é o menino que me ensina a cada dia que amar é também não entender. Que cuidar é, muitas vezes, falhar tentando. Que o caos não é ausência de amor — é só amor em estado bruto, difícil de lapidar.

E o sereno? O sereno é aquele momento entre duas tempestades. É a pausa entre duas batalhas. E é também o que me salva. É o que me faz olhar para ele, ali, com a touca na cabeça e o olhar perdido na janela, e pensar: vale tudo a pena. Vale cada estação.

Mesmo a do Hospital do Trabalhador.

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