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EDITORIAL | Cassação por “cartilha” e arquivamento por nepotismo: o duplo padrão que a Câmara precisa explicar

A Câmara de Curitiba apertou, de novo, o botão mais extremo. Por 29 a 6, o plenário instaurou, nesta segunda-feira (1/9) a Comissão Processante — o rito que pode levar à cassação — contra a vereadora Professora Angela (PSOL), acusada de “apologia às drogas” por supostamente ter distribuído material sobre redução de danos durante audiência pública. A comissão foi sorteada e terá Renan Ceschin (presidente), Olimpio Araujo Junior (relator) e Zezinho Sabará (membro). É a primeira vez que a Casa aplica esse procedimento desde a revisão do Regimento Interno, em dezembro de 2024, utilizando o Decreto-Lei 201/1967 como base.

O contraste que salta aos olhos não é sobre ideologia; é sobre critério. Em 7 de julho, por 4 a 3, o Conselho de Ética arquivou o Processo Ético Disciplinar 1/2025 — a denúncia de nepotismo contra Eder Borges (PL) — e, semanas depois, considerou sequer admissível o recurso que pedia levar o caso ao plenário. A justificativa foi a ausência de previsão regimental para esse tipo de recurso.

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Quando o tema é uma cartilha de saúde pública, a Câmara vai direto ao topo da escala sancionatória. Quando o assunto é possível favorecimento em gabinete, a régua fica mais elástica, a ponto de a discussão morrer no próprio conselho. A pergunta é simples e incômoda: qual é, afinal, o padrão da Casa?

Convém lembrar que redução de danos não é invenção de militância, é política pública reconhecida pelo Ministério da Saúde, especialmente em contextos de ISTs/HIV, hepatites e uso de álcool e outras drogas, com foco em salvar vidas e reduzir agravos — não em estimular consumo. Tratar essa abordagem como “apologia” exige prova robusta de incentivo ao uso, não a distribuição de informação que o próprio poder público recomenda em determinadas estratégias de saúde.

Também não é a primeira vez que a Câmara transforma processos disciplinares em arena de guerra política. Em 2022, a Casa levou adiante — com parecer de relatoria de Sidnei Toaldo — a cassação do então vereador Renato Freitas (PT). Meses depois, o Supremo Tribunal Federal restabeleceu o mandato, apontando vícios no trâmite. O fato não inocenta condutas; apenas evidencia que o Legislativo curitibano já errou a mão na dosimetria e no procedimento.

No caso atual, há ainda alegações públicas de suspeição e parcialidade envolvendo agentes do processo — tema que, por óbvio, precisa ser enfrentado com transparência se a Câmara quiser preservar a credibilidade do julgamento.

Nosso ponto é direto:

  1. Coerência de critérios. Se a Câmara entende que “apologia” justifica a via mais drástica (Comissão Processante e possibilidade de perda de mandato), então denúncias de natureza patrimonial e de gestão de gabinete — como nepotismo — não podem ser tratadas como assuntos de menor potencial ofensivo, encerrados por um fio de votos no Conselho de Ética. A inversão de gravidade comunica prioridades tortas à sociedade.
  2. Prova, não pânico moral. A Comissão Processante terá de demonstrar, com base em evidências e não em indignação performática, que houve estímulo ao uso de substâncias e não divulgação de diretriz sanitária. Sem isso, o que sobra é a criminalização de uma estratégia de saúde reconhecida pelo próprio Estado.
  3. Procedimento à prova de STF. Depois do precedente de 2022, qualquer atalho, impedimento ignorado ou atropelo do contraditório será um convite à nulidade futura — e a mais um desgaste institucional desnecessário.
  4. Transparência sobre impedimentos e falas prévias. Se há membros que se pronunciaram publicamente sobre o mérito antes de julgar, que a Mesa e a própria Comissão tratem de afastar dúvidas — por iniciativa própria, com decisões fundamentadas e publicizadas. Isso protege o processo e a imagem da Casa.

A Câmara tem, sim, a obrigação de apurar condutas de seus membros — todas elas. Mas tem a obrigação maior de fazê-lo com a mesma régua, independentemente do alvo político. Quando uma cartilha de redução de danos vira caso de cassação e um processo por nepotismo não passa da sala ao lado, o recado que chega à rua é inequívoco: há mais disposição para punir discursos e símbolos do que para encarar práticas que corroem a ética pública.

Curitiba não precisa de um novo espetáculo disciplinar. Precisa de trabalho sério, prova concreta, rito impecável e coerência. Se a Comissão Processante concluir que houve “apologia”, que demonstre isso com técnica — e que a pena seja proporcional. Se não, que a Câmara tenha a coragem de dizer que errou o alvo, de arquivar o processo e de reabrir o debate sobre como julga a si mesma. Porque o que está em jogo aqui não é apenas um mandato. É a credibilidade do Parlamento municipal.

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