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Quando um ministro atravessa o espelho: Gilmar, a Constituição e a tentação do poder sem limite

Há momentos na vida institucional de um país que parecem silenciosos demais para o tamanho da consequência. Instantes em que nada explode, ninguém grita, não há tanques na rua — mas uma fronteira invisível é atravessada. O Brasil assistiu a um desses momentos.

Com um despacho solitário, Gilmar Mendes decidiu que a Constituição não bastava. Reescreveu, na prática, as regras do impeachment de ministros do Supremo, anulando uma legislação que existe há quase 70 anos. Sem barulho, sem solenidade — apenas uma canetada cujo impacto, como uma pedra lançada num lago, se expande em círculos cada vez maiores.

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Porque o gesto comunica algo simples e perturbador: quando um poder passa a decidir seus próprios limites, deixa de existir limite.

E aqui termina a poesia e começa a navalha.
Se o objetivo era impedir abusos futuros do Senado, Gilmar escolheu o caminho mais fácil — cometê-lo primeiro. Fez exatamente o que dizia temer. Criou um escudo institucional que não existe em democracias maduras. Agora, só o Procurador-Geral pode pedir impeachment de ministro, e o Senado só pode abrir o processo com dois terços de seus membros.

É a engenharia jurídica criada para parecer prudência, quando na verdade é autopreservação. A versão togada da máxima política mais antiga do país: faço o que for preciso para impedir que façam comigo aquilo que acabei de fazer.

E o mais chocante não é o excesso — é a naturalidade com que se aceita o excesso.
O sistema brasileiro se acostumou a improvisos. A esquerda aplaude porque lhe convém hoje. A direita grita porque não lhe convém hoje. Amanhã, trocam de posição. No Brasil, não se defende princípio: defende-se conveniência. E por isso nunca construímos estabilidade.

Mas a decisão de Gilmar não é um raio isolado. É parte de um padrão.
O vício estrutural do país é transformar exceções em método, urgências em regra, e a Constituição em algo parecido com uma caixa de sugestões — um documento que cada poder consulta, mas não necessariamente segue.

A história brasileira está cheia desses momentos em que, para evitar o caos, criamos mais caos; para evitar abusos, toleramos abusos; para proteger a democracia, ferimos suas bases.
Nunca funcionou. Ainda assim, repetimos.

O risco dessa decisão não está apenas no presente, mas no precedente. Se o Supremo pode reinterpretar a Constituição sempre que se sentir ameaçado, por que os outros Poderes não poderiam fazer o mesmo? Por que o Executivo não declararia certas decisões “inaplicáveis”? Por que o Congresso não limitaria o controle de constitucionalidade em nome da “autonomia parlamentar”?

Quando cada poder escreve suas próprias regras, não existe mais regra — só força.
E força, como sabemos, não tem lealdade.

Gilmar não destruiu a democracia. Mas ensinou, mais uma vez, como ela pode ser erodida sem ruído, sem escândalo, sem marcha militar: apenas com a crença equivocada de que, desta vez, o improviso é justificável.

O problema é que improvisos nunca ficam onde começam. E a pergunta que sobra — a única que realmente importa — é a mesma que acompanha todas as erosões institucionais da nossa história: quem será o próximo a atravessar o espelho?

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