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A retórica de Moscou e o silêncio em Kiev

Dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras. Mas algumas imagens custam muito mais que mil silêncios.

Janja, com um casaco vermelho luxuoso e um cachecol escuro com estampas florais, caminhava sorridente pelos salões do Kremlin, sob os protocolos da diplomacia oficial e câmeras diplomáticas. Lula, vestindo um sobretudo azul-marinho sobre terno cinza e camisa branca, depositava flores no túmulo do soldado desconhecido, ladeado por chefes autoritários como Xi Jinping, Nicolás Maduro, Miguel Díaz-Canel e Aleksandr Lukashenko. E, ao fundo, o anfitrião: Vladimir Putin. Um homem que carrega nas costas não só o peso de uma guerra, mas também um mandado internacional de prisão por crimes de guerra.

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Não é preciso muito esforço para compreender o que essa cena comunica ao mundo. Basta um pouco de memória, um pouco de honestidade, e um pouco de coerência. Três coisas que, ao que parece, ficaram retidas na alfândega da diplomacia brasileira.

Lula foi eleito prometendo a reconstrução da democracia. E não sem razão: após anos de obscurantismo bolsonarista, com militares demais no governo e minorias de menos nas políticas públicas, o Brasil precisava reencontrar o eixo. E Lula, com sua trajetória operária e seu histórico de enfrentamento, parecia o homem certo para esse momento.

Mas eis o problema: o tempo passou, o cenário mudou, e o Lula de 2025 ainda carrega as sombras do Lula de antes. Aquele que sempre teve simpatia por ditadores desde que fossem “anti-ocidente”, como se isso, por si só, garantisse alguma superioridade ética.

A esquerda brasileira — ou parte dela — ainda vive presa à lógica binária da Guerra Fria. Acha que basta criticar os Estados Unidos para estar do lado certo da história. Esquece que o “lado certo” não é um continente. É uma postura diante da vida. Dos direitos. Da dignidade. E disso, Putin entende pouco.

Putin invadiu um país soberano. Matou civis. Bombardeou hospitais. Perseguiu e envenenou opositores. Reescreveu a constituição para se eternizar no poder. Criminalizou jornalistas, LGBT+, ambientalistas e todo tipo de dissidência. E Janja fala em “futuro de paz e fraternidade” — do lado dele.

A imagem é essa: uma selfie democrática no Instagram, com um ditador ao fundo.

Claro que há nuances. O Brasil faz parte dos BRICS. Há interesses geopolíticos, fertilizantes, petróleo, articulações diplomáticas. Mas nada disso obriga Lula a posar como enfeite de propaganda de guerra. Manter diálogo é uma coisa. Celebrar datas cênicas ao lado de líderes repressivos é outra — especialmente quando o país que invadiou o vizinho tenta reescrever a história com tanques.

A retórica democrática de Lula e Janja se dissolve quando confrontada com o realismo da foto. Fica mais parecida com performance. Com branding. Com peça de rede social.

E o que é pior: essa incoerência entrega argumentos prontos à extrema direita que tanto os acusa de hipocrisia. Argumentos que antes pareciam caricaturas, mas que agora ganham carne e gesto. Porque quem diz defender os pobres, as minorias, os oprimidos — mas sorri ao lado de quem oprime — compromete toda a narrativa.

Lula é menos pior que Bolsonaro? Sim. Talvez até muito menos. Mas entre ser o menos pior e ser o exemplo, há um abismo que se escancara cada vez mais quando ele cruza oceanos para aplaudir autocratas.

No fim das contas, talvez a pergunta seja essa: Lula cabe na moldura progressista que tanto tentam lhe atribuir? Ou seria mais justo reconhecê-lo como um pragmático — por vezes brilhante, por vezes contraditório —, mas incapaz de romper com a velha lógica de conveniência política?

A história julgará. Mas os rostos nas fotos já contam muito.

E o silêncio em Kiev continua.

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