Foi no ônibus, mais uma vez, voltando da terapia com meu filho, que percebi o que me escapava.
Não era a hora. Nem o trajeto. Era o que havia entre uma coisa e outra: as nuances. As frestas. O que se revela quando a gente desacelera e repara.
• Clique aqui agora e receba todas as principais notícias do Diário de Curitiba no seu WhatsApp!
O coletivo estava cheio, como sempre. Davi, meu filho, grande para seus 11 anos, mas ainda meio mole no balanço do mundo, estava sentado num banco comum, desses de sempre. Os assentos preferenciais estavam todos ocupados. Entraram dois idosos — uma senhora e um senhor — com passos lentos e mãos que buscavam onde se apoiar. Ninguém se mexeu. Ninguém sequer ergueu o olhar da tela. O mundo virou um feed sem pausa.
Pedi para o Davi levantar. Ele levantou, como se fosse óbvio. A senhora agradeceu e recusou. Disse que desceria logo. O senhor também. Davi sentou de novo. O ônibus seguiu.
Mas alguma coisa ficou em mim.
Aquela cena — tão pequena, tão comum — dizia algo incômodo: que a gentileza virou exceção. Que o outro virou obstáculo. Que a atenção virou esforço. Que a civilidade virou luxo.
E foi aí que me lembrei de Pepe Mujica.
O ex-presidente do Uruguai morreu esta semana, aos 89 anos, após lutar contra um câncer agressivo. Mas sua vida foi, antes de qualquer diagnóstico, uma espécie de antídoto. Contra o cinismo. Contra a pressa. Contra a lógica de que para governar é preciso se afastar da terra, das pessoas, da simplicidade.
Pepe morou na chácara. Plantava. Dirigia seu próprio Fusca azul. Recusou o palácio, o carro oficial, o salário cheio. Foi ex-guerrilheiro, preso por 13 anos — nove deles em solitárias. Saiu de lá com a alma intacta. Não se tornou ódio. Não virou vingança. Preferiu virar coerência.
Descriminalizou o aborto. Aprovou o casamento homoafetivo. Regulamentou a maconha. E ainda assim, era chamado de moderado pelos mercados. Porque não gritava. Porque não performava. Porque se podia discordar dele sem virar inimigo.
Mujica foi isso: um escândalo de calma num mundo viciado em barulho.
Um presidente que se parecia mais com o agricultor que oferece cadeira do que com o estadista que pede holofote. Um homem que falava devagar, andava devagar, mas acertava onde mais dói: na consciência. No exemplo.
Talvez por isso, me impactou mais do que o esperado sua partida — como quem assiste algo raro se despedir do mundo.
Porque hoje, quase tudo parece um espetáculo. A política, a fé, o luto, até a bondade. A humildade virou fraqueza. A coerência virou exceção. E Mujica… Mujica virou memória.
Mas que memória.
Pra honrá-la, deixo aqui um poema do conterrâneo Mario Benedetti, que talvez falasse por ele — e por nós:
Não te rendas
Mario Benedetti
Não te rendas,
ainda estás a tempo
de alcançar e começar de novo,
aceitar tuas sombras,
enterrar teus medos,
libertar o lastro,
retomar o voo.
A vida, Mujica talvez dissesse, não precisa ser um voo alto. Só não pode ser automático.
E se hoje nos falta nuance, talvez seja porque nos falta tempo de olhar nos olhos, de levantar do banco, de viver com pausa. Mujica era isso: a pausa.
O gesto que não estampa outdoor, mas muda alguma coisa em quem viu.
E a pergunta que fica — pra mim, pra você, pro mundo — é: será que ainda lembramos como se faz isso? Será que ainda sabemos quando é hora de levantar, mesmo que ninguém peça, mesmo que digam que vão descer logo?
Que Mujica descanse onde as sementes descansam: prontas para florescer de novo, quando a gente decidir regar o essencial.