Não foi apenas o corpo de Charlie Kirk que tombou em uma universidade de Utah, aos 31 anos, atingido por um disparo na jugular diante de estudantes atônitos. Foi também a ilusão de que ainda sabemos conversar sem transformar divergência em pólvora. Kirk, influente ativista conservador, pai de dois filhos, figura presente em campanhas republicanas e em debates acalorados, morreu diante de câmeras e celulares, em plena luz do dia, como se a própria política tivesse perdido a capacidade de se defender com palavras.
As imagens — sangue jorrando, jovens desesperados, gritos interrompendo o que deveria ser um ato de ideias — são o retrato de uma sociedade doente. Uma sociedade em que o outro não é adversário, mas inimigo; não é voz, mas alvo. O ódio que se planta diariamente nas redes, nas tribunas e nas conversas de bar agora germina em tragédias que deixam órfãos não apenas filhos pequenos, mas a própria democracia.
E não é um caso isolado. A América Latina conhece bem o gosto amargo da violência política: em agosto de 2025, o senador e pré-candidato à presidência da Colômbia, Miguel Uribe Turbay, faleceu após meses em estado crítico, consequência de um atentado sofrido em plena campanha. No Brasil, a memória ainda é fresca da facada contra Jair Bolsonaro em 2018. Na Argentina, a ex-presidente Cristina Kirchner sobreviveu a uma tentativa de assassinato quando a arma falhou. Nos Estados Unidos, Donald Trump quase tombou sob o disparo de um atirador. A lista cresce como se a política tivesse trocado o palanque pelo campo de batalha.
Não é coincidência: é sintoma. Vivemos a era em que o debate é substituído pelo grito, e o grito, pela bala. A democracia, que nasceu da ideia de que é possível conviver com o dissenso, virou um ringue onde só interessa nocautear. Mas, como lembrava Hannah Arendt, o poder não nasce da violência, mas da ação conjunta. Quando se recorre à arma, é porque já se perdeu o argumento.
Os filósofos antigos viam na política o espaço do encontro, do reconhecimento do outro. Para Aristóteles, éramos animais políticos porque só no convívio aprendíamos a ser humanos. Hoje, corremos o risco de nos tornar animais ferozes, incapazes de reconhecer no rosto alheio algo além de uma ameaça. A bala que matou Charlie Kirk não matou apenas um homem: atravessou o tecido já esgarçado da convivência.
É irônico, e trágico, que tantos em nome da fé, da pátria ou da liberdade justifiquem essa escalada. Como se fosse possível construir uma sociedade sem ouvir quem pensa diferente. Como se a democracia pudesse sobreviver amputando o dissenso. O resultado está aí: famílias divididas, amizades destruídas, líderes tombando, a praça pública transformada em campo minado.
O atentado contra Kirk será lembrado como mais um capítulo de uma lista macabra. Mas deveria ser também um espelho. Porque cada vez que compartilhamos ódio como se fosse opinião, cada vez que reduzimos o outro a caricatura, cada vez que celebramos a derrota do diferente como se fosse vitória absoluta, empurramos mais um passo na direção do abismo.
A pergunta que fica não é apenas quem puxou o gatilho. É quem afiou a lâmina antes. Quem alimentou o ódio com discursos fáceis, memes venenosos, fake news virais. Quem preferiu o inimigo ao adversário. Porque nenhuma bala nasce sozinha: ela é sempre parida por um verbo que perdeu a vergonha.
E se a democracia ainda nos importa, talvez seja hora de reaprender a fazer aquilo que parece mais difícil no nosso tempo: ouvir.