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Curitiba, dezessete de junho de 1991. Sete e trinta da manhã. A bancária Arlete Caramês, 47 anos, acorda para ir trabalhar. Enquanto se prepara, uma forte sensação de que não deve sair de casa nesse dia a toma repentinamente. “Foi tipo uma premonição. Senti que não deveria sair de perto do meu filho naquele dia”, relembra. Por um minuto, pensa em não ir trabalhar, mas logo muda de ideia. “Como sempre, procurei fazer tudo com responsabilidade, tirei a aquilo da cabeça e continuei a me arrumar.”
Às oito horas, Arlete está pronta para sair. Desce as escadas e toma rapidamente o café da manhã. Despede-se do marido, o aposentado Ewaldo Oscar Tiburtius, 66 anos, com um beijo. Abraça e parabeniza sua mãe, Sueli Caramês, que comemora o 67º aniversário, e promete a ela uma pequena comemoração entre amigos mais tarde. Sobe novamente as escadas, atravessa o corredor em direção ao quarto de Guilherme Caramês Tuburtius, 8 anos, único filho do casal. Abre a porta, e se despede de longe do menino que ainda dorme com beijo no ar, e segue rumo ao trabalho.
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Na mesma manhã, por volta das 10h, Guilherme sai para andar de bicicleta na quadra em que moravam no Jardim Social, como de costume. Antes de voltar para casa, liga para o celular da mãe, de um número desconhecido, pedindo um dinheiro que tinha encontrado um dia antes num passeio, e havia pedido a ela que guardasse. “Eu disse que, quando ele voltasse para o almoço, eu entregaria o dinheiro”, lembra Arlete. Pouco antes do meio dia, a avó o chama para almoçar e se arrumar para ir à escola. O garoto pede a avó para dar uma última volta de bicicleta, e com o aceite da avó sai acenando, dizendo que logo voltará. Depois disso, começou o sofrimento da família. Ele nunca mais voltou. Guilherme desapareceu sem deixar vestígios.
A família nunca seria a mesma a partir daquele dia. A falta de Guilherme se tornou um sofrimento diário. Uma ferida que nunca se cicatrizou. À procura e a espera se tornaram a síntese da vida de todos. Sueli, a avó, que era quem cuidava do menino quando desapareceu, nunca mais comemorou um aniversário e nunca se perdoou. Falecida em 2016, com 92 anos, a avó guardou na memória, até os últimos dias de sua vida, a imagem do garoto pedindo para dar a última volta de bicicleta, e morreu carregando um sentimento de culpa e incapacidade. Ewaldo, o pai de Guilherme, nunca mais conseguiu falar sobre o filho desaparecido sem chorar. Arlete, nunca se esqueceu de que não chegou perto do filho para se despedir antes de trabalhar, e tem a dor e o sofrimento estampados no rosto até hoje, 27 anos depois. “Foi uma brutalidade com todos nós”, lamenta.
Buscas
Arlete relembra com os olhos marejados que quando chegou em casa para almoçar, por volta do meio dia, a mãe Sueli, avó do Guilherme, já havia se dado conta do sumiço e acionado a polícia. “Eles fizeram um rastreamento por toda a região, procuraram num riozinho que fica ali perto com cães farejadores, mas não encontraram nada”, lamenta a mãe. Algum tempo depois, a mãe soube que antes de passar na frente de casa, ele tinha conversado com duas irmãs gêmeas que moravam na mesma rua. “As duas tinham acabado de ganhar um coelho e contaram que ele saiu de lá dizendo que também queria comprar um coelho. Então, deduzi que ele tinha me pedido o dinheiro para comprar o animalzinho”, comenta.
Outras pistas apareceram com tempo, mas nenhuma levou a lugar algum. Com as investigações estagnadas, Arlete e a família começaram a espalhar cartazes com a foto do Guilherme por vários lugares. Ela lembra que, além da capital paranaense, espalharam cartazes por todo o Brasil. “Eu ia para vários lugares e enviava por correio para que as pessoas espalhassem as fotos em locais que tinha bastante circulação de pessoas, como terminais de ônibus, hospitais, entre outros”, recorda. Mas a ação que visava chamar a atenção de quem pudesse ajudar chamou também a atenção de pessoas de má fé. “Muita gente não respeitava o nosso sofrimento e mentia ao passar trotes. Fui para muitos lugares que me indicaram, mas todos foram em vão. Cheguei a ir em uma seita religiosa em Buenos Aires, na Argentina, porque me disseram que havia muitas crianças no local. Recebi muita informação falsa”, comenta a mãe.
Dor e união
Os dias se passaram, e mesmo com um trabalho dedicado e esforçado de Arlete e toda sua família, o filho não reapareceu. Só restou à mãe o consolo de ajudar outras famílias a aplacar a angústia enquanto a polícia agia. Junto com a amiga “solidária na dor”, Marília Marchese, criou o Movimento Nacional em Defesa da Criança Desaparecida do Paraná (CriDesPar). A sede da ONG foi instituída exatamente no mesmo local em que Guilherme foi visto pela última vez – Rua Ozório Duque Estrada, 1132 – Jardim Social – Curitiba – PR. “Eu e o Ewaldo havíamos nos mudado para o [bairro] São Lourenço. E como sempre achei que de alguma forma o Guilherme iria voltar, não queria nossa antiga casa vazia ou com outras pessoas morando nela”, explica.
Assim, a mãe do Guilherme passou de bancária à fundadora e presidente da ONG. O CriDesPar logo ganhou relevância nacional. Mais de 500 casos passaram pelas mãos delas, de funcionários e voluntários do movimento. Através da colaboração de doadores e com o salário de Arlete, funcionária pública e, posteriormente, vereadora e deputada estadual, o grupo desenvolveu projetos e ações que ajudaram a polícia a solucionar pelo menos 470 sumiços.
Em sua busca constante por voz e soluções efetivas para a causa das crianças desaparecidas, Arlete também embarcou na carreira política, ao mesmo tempo em que desenvolvia trabalhos com a ONG. Foi eleita vereadora de Curitiba por duas vezes seguidas e deputada estadual. Empossada no cargo iniciou uma luta que se revelou frutífera. Na Assembleia (2003-2006), aprovou leis que obrigavam a polícia a realizar a busca imediata do desaparecido, não mais após 24 horas; hotéis a cadastrar hóspedes com menos de 16 anos; e que determinavam às escolas que estas exigissem a apresentação do RG da criança no ato da matrícula, tudo para dificultar os sequestros.
As mudanças na legislação propostas pela mãe do Guilherme tornou o trabalho da polícia mais eficiente e dificultou possíveis crimes. A lei que possibilita a busca imediata de pessoas de até 12 anos também foi aplicada na esfera federal, através da Lei 11.259, de 30 de dezembro de 2005, que alterou a redação do Estatuto da Criança e Adolescente e determinou a busca imediata de crianças e adolescentes desaparecidos.
Em 2006, porém, houve uma guinada em sua luta. Arlete não foi reeleita para a Assembleia Legislativa. Sem o salário de deputada, as contas começaram a apertar. A falta de dinheiro para contratar funcionários, imprimir cartazes com fotos das crianças, bancar campanhas e palestras fez com que as ações promovidas pelo CriDesPar fossem diminuindo. “Quase todo o meu salário como deputada era colocado aqui. Chegava ao fim do mês, eu perguntava para Marília [Marília Marchese] de quanto ela precisava e dava o dinheiro. Depois do fim do meu mandato, ficou difícil”, diz Arlete.
Entre as ações desenvolvidas que foram afetadas com a falta de verbas, antes da desativação total do projeto, a mais importante, segundo Marília, foi o trabalho de prevenção, por meio de palestras nas escolas, com campanhas de conscientização de pais, alunos e professores. “Evitar o desaparecimento é muito mais fácil do que procurar uma criança desaparecida, mas não há sensibilidade por parte de governos e empresas. No Brasil, o tema é tratado com pouca vontade, e as pessoas só acordam para o problema quando isso acontece com elas”, lamenta a amiga de Arlete. Obter patrocínio de empresas ou verba pública é um desafio. “Um dia, escrevemos a algumas empresas grandes para pedir que cada uma colaborasse com R$ 100 ao mês. Até hoje não obtivemos resposta. Já o governo alega sempre o mesmo: falta de recursos. Uma vez pedimos a quantia de R$ 120 mil por ano e recebemos um ‘não’ como resposta”, conta Marília.
Durante quase duas décadas de atuação, o trabalho desenvolvido pelo CriDesPAr foi beneficiado por muitas iniciativas reais de solidariedade, como a do Provopar, que chegou a doar R$ 1 mil por mês, durante muitos anos. As histórias de pouco caso, porém, também apareceram aos montes, como da vez em que escreveram ao presidente de uma companhia aérea pedindo uma passagem para ir ao encontro de uma criança encontrada no Nordeste. O presidente respondeu que não tinha condições. A tréplica veio na forma de uma carta “desaforada” ao empresário. “Não era falta de dinheiro. Era falta de solidariedade”, afirmou Arlete na carta endereçada ao empresário. Com pouca ajuda e sem seu salário a luta da ex-deputada pelo filho, se somou à luta por recursos. Mas foi uma batalha perdida. “Precisavamos de dinheiro, e de sensibilidade. Não encontramos nem um e nem a outra. Tivemos que desativar o projeto”, lamenta Arlete.
Sicride
O desespero de Arlete na busca pelo filho desaparecido também foi primordial para a criação do Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride). A criação desse órgão policial específico para o atendimento aos casos de crianças desaparecidas deu mais agilidade à solução deste tipo de ocorrência. De acordo com a delegada do Sicride, Iara Dechiche, o que faz a diferença é a especialização dos policiais neste tipo de crime. “A dedicação exclusiva a este tipo de atendimento e investigação torna ainda mais eficaz, possibilitando um acompanhamento contínuo de todos os casos, bem como a centralização de informações sobre os desaparecimentos”, diz a delegada.
Criado em 1996, o Sicride atualmente trata de 28 casos de crianças desaparecidas. Deles sete foram registrados nesta década, oito na passada, nove nos anos 1990 e quatro na década de 1980. O caso mais antigo remete a 29 de março de 1982. Naquele dia, Ednilton Palma, que na época tinha 10 anos de idade, desapareceu em Maringá, no Norte do Estado. Sua mãe, Delva Fiúza Palma, mantém até hoje esperanças de localizá-lo. A Polícia Civil e outros órgãos de segurança pública mantêm fotos das crianças desaparecidas, com nome, cidade do desaparecimento, idade na época do ocorrido. Em alguns casos, quando o desaparecimento tem muito tempo, até mesmo fotos simulando como estariam estas crianças atualmente, são divulgadas.
Uma dessas fotos está na casa de Arlete Caramês, numa mesa com fotos do Guilherme de quando era criança, cartazes de divulgação do desaparecimento e outras simulações de como ele ficaria em diversas idades. Em frente a esse pequeno santuário, criado para trazer mais para perto o filho que simplesmente desapareceu sem deixar nenhum vestígio, a mãe fica revigorada. “Ainda tenho muito tempo de vida nunca irei desistir de achá-lo. Ele é meu filho, e eu o quero de volta.”
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Por ano, 40 mil notificações
No Senado, está em análise na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) o Projeto de Lei que determina a divulgação pela televisão das informações do Cadastro Nacional de Crianças Desaparecidas. A inserção seria feita diariamente nos intervalos da programação das emissoras, por no mínimo um minuto, no período compreendido entre 18 e 22 horas. Estima-se que 40 mil crianças e jovens desapareçam anualmente no Brasil. No site http://www.desaparecidos.gov.br qualquer pessoa consegue registrar o desaparecimento de uma criança ou adolescente.