Investigando o não-dito nas falas das autoridades governamentais
Cena I
“Está superdimensionado o poder destruidor desse vírus. Talvez esteja sendo potencializado até por questões econômicas”.
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(Presidente Jair Bolsonaro – 09 de março de 2020 – 25 casos acumulados e 0 mortos)
Cena II
“Brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”
(Presidente Jair Bolsonaro – 26 de março de 2020 – ao ser questionado pela falta de ação frente à pandemia, disse que o brasileiro precisava ser ‘estudado’, insinuando que seriam menos contaminados porque mais resistentes – 2.915 casos acumulados e 77 mortos)
Cena III
“É bom que as mortes se concentrem entre os idosos… Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário”
(Solange Paiva Vieira – março de 2020 – em reunião entre o Ministério da Economia e o Ministério da Saúde para análise do impacto da pandemia sobre a economia, a titular da Superintendência de Seguros Privados justifica porque considerava o impacto positivo)
Cena IV
“E daí, quer que eu faça o que?”
(Presidente Jair Bolsonaro – 28 de abril de 2020 – ao ser questionado sobre o número de mortes – 72.149 casos acumulados e 5.050 mortos)
Cena V
“A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”
(Presidente Jair Bolsonaro – 02 de junho de 2020 – 555.383 casos acumulados e 31.199 mortos)
Cena VI
“Quando o estado avança sobre interesses e liberdades individuais, dificilmente ele recua. Não deixe que o pânico nos domine. Nossa liberdade não tem preço, ela vale mais que a própria vida”
(Presidente Jair Bolsonaro – 12 de dezembro de 2020 – em discurso de formatura na Escola Naval)
Cena VII
“O Brasil está quebrado. Eu não consigo fazer nada”
(Presidente Jair Bolsonaro – 05 de janeiro de 2021 – ao ser indagado sobre a compra de vacinas – 7.810.400 casos acumulados e 197.777 mortos)
Cena VIII
“Vai devagar, devagar, tirando seus bens e esperança. Tirando teu ganha pão. Você passa a ser obrigado a ser sustentado pelo estado. Tem governador que fala em auxílio emergencial e quer fazer o bolsa família próprio. Quanto mais gente viver de favor, mais dominado fica esse povo.”
(Presidente Jair Bolsonaro – 12 de março de 2021)
Cena IX
“Todo mundo quer viver 100, 120, 130 anos. Todo mundo vai procurar serviço público [de saúde] e não há capacidade instalada no setor público pra isso. Vai ser impossível”
(Ministro da Economia Paulo Guedes – 27 de abril de 2021 – em reunião no Conselho de Saúde Suplementar)
Frequentemente, na condição de cidadãos, ouvimos falas, trechos de conversas, máximas ou palavras de ordem pronunciadas por governantes e líderes políticos. Esses comunicados não simples “pronunciamentos” ou “falas”, mas verdadeiros atos políticos. Por essa razão o cidadão que se preocupa com a condução da coisa pública precisa ter uma compreensão mais profunda desses enunciados. Neste texto, que será publicado em duas partes, me proponho fazer um exercício de compreensão das falas citadas acima.
Considero esse exercício útil por dois motivos. Primeiro, porque as falas políticas nem sempre se apresentam como um discurso, isto é, freses dentro de uma estrutura coerente, donde podemos extrair com clareza as intenções do emissor, os fundamentos de suas ideias e suas referências. Cabe, por isso, ao cidadão o exercício de esmiuçar (ou “esmigalhar”) esses enunciados para buscar dentro deles os significados não explícitos (não ditos) para não ser surpreendido pelas artimanhas da persuasão.
O segundo motivo é que o cidadão precisa atribuir ordem ao caos de enunciados. As falas partem de pessoas diferentes, em momentos distintos, visando públicos diversos. Elas chegam até as pessoas de forma fragmentada e desconexas. É necessário dar sentido aos fragmentos de fala. É preciso entender o discurso do qual fazem parte, mas é dito.
O Problema da Dominação
Como conseguir a obediência das pessoas e garantir a existência de uma sociedade organizada e próspera? Essa questão constituiu e ainda constitui uma das questões fundamentais dos estudos de política. Há séculos (melhor, há milênios) pensadores e pesquisadores têm se dedicado a respondê-la, produzindo obras que nos servem de guia tanto para a reflexão quanto para a ação política. Pois, concretamente, como fazer funcionar a relação comando-obediência sempre constituiu um problema para os governantes, ao longo da história. Cada época resolveu essa questão a seu modo.
Na Idade Média, por exemplo, entre o ano 400 e 1400 a Europa consistia num amontoado de fazendas (feudos) onde o controle sobre a população de servos (trabalhadores) era quase homem a homem, feito pelo senhor feudal (proprietário do latifúndio e dono do castelo) e seu exército particular de cavaleiros, de um lado, e pelos eclesiásticos, de outro. Nesta época, conhecida como Feudalismo, a quase totalidade da população europeia estava reduzida a servidão e deles era desconhecido qualquer sentimento nacional: se, no ano 1321, fosse perguntado a um trabalhador que morasse na região de Lion (Reino Franco, hoje, França), “quem é você?”, provavelmente, responderia que ele era o “Pierre, do Ducado de Borgonha”). Jamais responderia: “Sou francês”. Isso simplesmente não existia. Portanto, os líderes da época jamais conseguiriam arrancar a obediência dizendo: “Deus acima de tudo. França acima de todos!” A condição histórica da época era a “marcação” direta dos cavaleiros sobre a vida dos servos.
Contudo, mais de 500 anos após o fim da Idade Média, as sociedades (me refiro às ocidentais) funcionam sem a necessidade de vigilância ostensiva do braço armado do governo. Isto é, as crianças vão à escola, os pais ao trabalho, os clientes vão às compras, sem que necessite da polícia ficar fiscalizando os passos de cada cidadão. Parece que todos sabem o que fazer. A impressão de que fizemos um acordo silencioso sobre como devemos desempenhar nossos papéis na sociedade intrigou diversos autores das ciências humanas e sociais.
Essa curiosidade dos estudiosos tem uma motivação forte e importante. Caro leitor, pense comigo. Nos últimos 300 anos, as sociedades ocidentais têm conquistado graus crescentes de um tipo de liberdade nunca visto antes. Hoje, por exemplo, podemos adotar a filosofia de vida que bem entendemos, podemos professar a religião que nos parece mais adequada (e podemos até não ter religião alguma), temos liberdade de votar para candidatos de cores políticas diversas e etc. Ora, com tanta gente com liberdade para pensar e agir de maneira diversa umas das outras, essas sociedades teriam tudo para não funcionar organizadamente. Mas, sabemos, isso não ocorre. Essa constatação surpreendeu, e ainda surpreende, muitos estudiosos. Meu intuito aqui não é fazer um elenco das teorias que nasceram dessa curiosidade e que explicam o fenômeno. Como meu objetivo é fazer um exercício de interpretação dos enunciados acima, vou “chamar” um e outro autor cujos estudos podem nos ajudar nessa tarefa.
A Biopolítica e o Estado de Bem-Estar
O primeiro deles é o filósofo e historiador francês Michel Foucault. A relação “saber – poder” foi uma das preocupações basilares da sua obra. Em seus escritos, a preocupação do autor era entender como partimos de uma condição de vigilância constante sobre os corpos, individualmente, como se fazia na Idade Média, para a condição moderna de controle sobre as multidões, digamos, menos ostensiva e mais “frouxa”. Para dar resposta à questão de como se opera a dominação social na modernidade, o estudioso francês elaborou o conceito de “biopolítica”.
Segundo ele, nas sociedades atuais, o poder não é mais exercido pela atuação de grupos armados para a repressão contínua de seus membros. Suas investigações mostram que o poder, isto é, a dominação, se dá de forma mais sofisticada. O poder se manifesta, fundamentalmente, como “biopoder”, ou seja, como um conjunto de discursos que são gerados por saberes específicos e que têm como função disciplinar, controlar e moldar a vida dos indivíduos. Tais discursos produzem normas que ditam o que é o “certo” e o que é o “errado”, o que é o “sadio” e o que é o “doente”, o que é o “cidadão de bem” e o que o “criminoso”. Escrevo entre aspas porque, segundo Foucault, são normas históricas, isto é, seu conteúdo não é eterno, mas tem origem e se transformam em razão das forças histórias. Os saberes mudam e as normas se transformam. Por isso, para o autor, a vigilância e o controle sobre os indivíduos não precisariam mais ser homem a homem, como na Idade Média. Na modernidade, saberes produzem normas e as normas disciplinam os indivíduos e dominam os corpos.
Alguns exemplos dessa disciplina. Ao invés de manter vigilância homem a homem sobre as pessoas, agora um saber chamado Direito paira sobre todos impondo regras que dizem o que é permitido e o que é proibido e arrancando de cada um, em maior ou menor grau, a conduta desejável. Um saber, a Odontologia, impõe a norma de escovar diariamente os dentes. A Medicina normatiza que devemos lavar as mãos periodicamente, em especial antes das refeições, sob pena de padecermos de infecções. Não para por aí, a Medicina também nos impõe a norma do que podemos e não podemos comer, beber ou fumar. Da mesma forma, a Psicologia normatiza qual é o comportamento considerado “normal” e qual é o comportamento considerado “louco”.
O homem moderno vive numa sociedade disciplinar. Seus comportamentos são normatizados por discursos oriundos de saberes específicos, portanto, controlados. Essas normas têm aderência social por dois motivos. O primeiro é que elas são ensinadas desde os primeiros momentos do nascimento e, à medida do crescimento, diversas instituições (como a escola, a igreja, a empresa, e etc.) entram em ação para continuarem o trabalho (trabalho que é contínuo) de nos moldar segundo as normas. A polícia, o presídio, o hospital e o hospício ficam para os que não se enquadram nelas. O segundo motivo pelo qual as normas são socialmente persuasivas, é que os discursos normatizadores se justificam alegando o cuidado com a vida. A morte prematura e a violência constante que caracterizou a Idade Média cedeu espaço paulatinamente, a partir da modernidade, ao cuidado do Estado com a vida das populações.
Para Foucault, o exercício do poder não é somente negativo, isto é, não se trata apenas de exercer o poder por proibições: “não faça isso”, não se comporte de tal forma”, e etc. O poder moderno também é positivo, ou seja, ele cria comportamentos, cria padrões de corpos e modelos de vida. O poder que nasce dos discursos propostos pelos saberes disciplinares cria o “louco”, o “criminoso”, cria o “inimigo”. Exemplo disso, é a trajetória dos evangélicos no Brasil. Até a década de 1960, eram comuns os relatos de famílias expulsas de fazendas e demitidas de empregos pelo simples fato de serem “protestantes”. Em algumas regiões do Brasil eram tidos como “loucos”. Não é preciso recuar muito, há não mais que duas décadas atrás ser “crente” não era algo bem recebido pela sociedade e pelas famílias em particular. São os discursos normatizadores que ditam, em cada época, quem é o “inimigo”, qual é o comportamento “patológico”, que precisam ser fustigados e eliminados. Contudo, o objetivo público é sempre o cuidado com a vida, ora do indivíduo, ora do tecido social.
Essa transformação, por óbvio, de um modelo de controle direto dos corpos (como na Idade Média) para um modelo de controle disciplinar não se deu sem conflitos ou de forma repentina. Como disse Weber, certa vez, essa foi uma “construção de meio milênio”. E, para a sua eficácia, concorreram o Estado, as ciências e as instituições modernas, tais como: o quartel, a prisão, o hospital, a escola, a igreja e a empresa. Se hoje os pais levam seus filhos para vacinarem é porque o discurso médico lhes impõe tal regra. O discurso psicopedagógico normatiza a forma dos pais corrigirem os filhos. O discurso arquitetônico-urbanista nos impõe os recuos (de frente, fundos e laterais) que devemos observar em nossas plantas habitacionais. Eu poderia esticar esta lista quase ao infinito. O homem moderno é controlado a partir de discursos criados por saberes específicos que normatizam seus corpos e suas decisões.
Essa foi a forma que os países centrais do capitalismo desenvolveram para submeterem suas populações, impondo-lhes a conduta exigida para o novo mundo do trabalho industrial. Ao longo dos séculos XIX e XX, vimos os dois processos caminharem concomitantemente: industrialização e disciplinarização da sociedade. Essa combinação ficou conhecida como modelo de “Estado de Bem-Estar”. Um Estado que pretendia tangenciar quase todas as fases e âmbitos da vida dos cidadãos, como um provedor vigilante e onipresente.
A Crise do Modelo de Biopolítica
Todavia, as contradições inerentes ao capitalismo, que o leva a atravessar crises periódicas, forçou-o a uma mudança fundamental nessa relação entre economia e submissão dos corpos. O modelo disciplinar de controle, consubstanciado no Estado de Bem-Estar, passou a mostrar-se demasiado oneroso e contraditório. A submissão dos cidadãos ao controle dependia de sua expansão crescente e a capacidade de financiamento dessa expansão começou a ameaçar os limites do processo de acumulação capitalista, isto é, a lucratividade da empresa privada. Por volta da segunda metade da década de 1970, a contradição que se apresentava às economias capitalistas centrais era essa: o capitalismo precisava de pessoas controladas e disciplinadas e, para consegui-lo, um intrincado sistema de normas disciplinarizadoras foi erigido, em especial a partir do ente público, com oferta de bens e serviços por meio dos quais se exercitava o controle público sobre a sociedade, e cujo custeio passou a incidir mortalmente sobre o coração do capitalismo – o lucro.
A partir de então, expressões ora dominadas apenas por economistas e estudiosos da história econômica passaram a fazer parte do cotidiano da imprensa e de debates no Ocidente: “déficit público”, “crise fiscal”, “Estado inchado”, “dívida pública” e etc. A resposta a essa crise foi o que ficou conhecido como Neoliberalismo. Não vou destacar aqui as teorias que o embasaram, mas o fenômeno pode ser descrito como um conjunto de políticas que tinham por objetivo o alijamento daquelas funções que, até então, os estados tinham como obrigações. Na linguagem dos neoliberais, tratava-se de “transferir para a sociedade” responsabilidades que eram públicas: privatização dos serviços de luz, água, esgoto e telefonia; privatização do transporte público; privatização da educação, do sistema previdenciário e da saúde; privatização da gestão das estradas e parques públicos, e demais serviços e bens de consumo coletivo.
Estas mudanças foram representadas pela ascensão de Margareth Thatcher ao cargo de primeira-ministra do Reino Unido (1979) e de Ronald Reagan à condição de presidente dos EUA (1980). O discurso era de que a economia voltando a crescer, todos teriam empregos e consumiriam, com isso a massa salarial cresceria e todos teriam dinheiro para custearem sua própria saúde, sua previdência e sua educação privadas, além dos outros bens e serviços. Claro que essa prosperidade ficou somente no discurso. Pois capitalistas adotaram medidas que impossibilitaram a realização completa desse “acordo” nos países centrais. Dentre essas medidas, destaco duas: para atingirem níveis elevados de lucratividade se transferiram para países e regiões de baixa performance econômica (pobres, portanto), onde a mão-de-obra era mais barata; e adotaram novas tecnologias de produção e organização da produção que ficaram conhecidas como “reestruturação produtiva”. O resultado disso foi um desemprego estrutural e bens e serviços de consumo coletivo altamente custosos.
Um estudioso como Michel Foucault não deixou de pensar que era só uma questão de tempo para então crise econômica tornar-se uma séria crise social. Com o desemprego crescente e os salários sendo achatados, no contexto de uma amarga privatização de serviços que garantiam alguma segurança social e o bem-estar, a massa populacional de trabalhadores necessitava ser controlada de alguma forma. Foucault percebeu que o abandono da disciplinarização pelas normas, no estado de bem-estar, precisaria ser substituída por outra forma de controle social.
No final dos anos 1970, ele começou a pensar nessa mudança no padrão de dominação, especialmente num estudo chamado “Segurança, Território e População”, resultado de um curso ministrado no Collège de France, em 1978. Na passagem da década de 1970 para os anos 1980, ele percebeu que o poder como gestão da vida, a biopolítica, vinha sofrendo mudanças em razão das transformações econômicas. Não obstante, sua morte, em 1984, fez com que o projeto ficasse inacabado.
De Volta ao Início, Provisoriamente …
Revisitando as nove cenas que evoquei no início deste texto, podemos arriscar um primeiro ensaio de interpretação. Pelo menos provisoriamente, poderíamos dizer que o governo Bolsonaro está comprometido com uma transição de modelo de dominação. Aquela forma de Estado que tangenciava a vida do cidadão em quase todos os pontos é percebida, agora, como uma forma de Estado ameaçador e que sufoca a “liberdade” do cidadão. O governo chega ao poder com um discurso segundo o qual a sociedade não deve esperar muito dele e do Estado.
É perfeitamente possível perceber o discurso do “endividamento” do Estado, como se fosse anormal o governo operar com dívida. Pelas falas do presidente e alguns de seus assessores, fica claro que quem deve pagar pelo saneamento da dívida pública são os que mais dependem do Estado, os trabalhadores pobres.
É importante o leitor notar que, pelas falas do presidente e seus assessores, inicia-se a montagem de um novo discurso que substitui o Estado-Provedor. O setor público, nesse novo discurso, é algo negativo ou, no máximo, um mal necessário. Por isso, deve ser mínimo. Dessa imagem (de Estado ineficiente, dispendioso, monstruoso e controlador) deriva outra que está implícita: a do funcionário público como incapaz, ineficiente e inútil, por mais elogiável que seja o trabalho dos correios ou das universidades públicas. Aliás, é notável a escassez de elogios do próprio governo ao heroico trabalho do funcionalismo ligado ao SUS, durante a pandemia.
Se antes, na vigência da biopolítica, ser funcionário público no Estado de Bem-Estar era motivo de orgulho, agora, um discurso começa a dar realidade ao funcionário público como “parasita” que sobrecarrega o Estado. O discurso começa a criar novos inimigos.
Como eu disse no início, as frases aprecem de forma fragmentada e até caótica. O exercício que estou propondo é entender o discurso que emoldura aqueles enunciados, portanto, ir além do que é dito e está explícito. Queremos perceber o que está ali, naquelas falas, mas não foi dito.
Por enquanto, vamos ficar com essa interpretação.
No próximo texto, apresentarei a hipótese de que, nas falas dos membros do governo, há algo mais do que uma simples disposição para mudar de modelo de Estado, portanto, de dominação.