Os especialistas ouvidos pela Câmara Municipal de Curitiba (CMC), nesta quinta-feira (19), foram unânimes em afirmar que cotas raciais no serviço público são para combater o racismo e que mudar o projeto para cotas sociais desvirtua essa luta. A audiência pública, transmitida ao vivo pelo YouTube, foi uma iniciativa da vereadora Carol Dartora (PT), que é a autora do projeto de lei que reserva 20% das vagas em concursos públicos da capital do Paraná para as populações negra e indígena. Uma emenda de Tito Zeglin (PDT) incluiu os povos ciganos.
A Comissão de Constituição e Justiça avalizou a tramitação do projeto na CMC, e, ao ser debatida na Educação, a iniciativa também recebeu voto favorável, mas a relatora, Amália Tortato (Novo), condicionou seu parecer à apresentação de um substitutivo geral mudando o conteúdo da proposta, alterando de cotas raciais para cotas sociais. Com isso, quando o tema for a plenário, o substitutivo é votado primeiro e, se aprovado, não ocorre a análise das cotas raciais, prevalecendo as cotas sociais. Se não houver protocolo de nova emenda, tem-se uma situação de ou um, ou outro.
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“Os remédios só são eficazes se forem prescritos mediante um diagnóstico”, contextualizou Dora Lucia Bertúlio, procuradora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e uma das protagonistas na luta antirrascista na instituição, que em 2004 foi uma das primeiras universidades do país a adotar uma política de cotas. “São dois conflitos extremos nesse país. A pobreza e o racismo. Combate-se a pobreza com o resgate da capacidade econômica. O racismo demanda ações afirmativas para a igualdade de oportunidade”, disse, criticando o substitutivo. “Os argumentos contrários [às cotas raciais] foram derrubados em todos os tribunais do país”.
Defensora Pública da União, Rita Oliveira participou da reunião da Comissão de Educação, com direito à fala, quando o substitutivo geral das cotas sociais foi aprovado. “Fiquei bastante impactada. Senti a hostilidade e a violência de um ambiente hegemonicamente branco e me veio toda a lembrança da [aprovação] da política de cotas no Legislativo federal”, contou. A defensora pública criticou Curitiba por ser uma das últimas capitais a adotar essa ação afirmativa, já que o racismo ocorre independentemente da classe social. “Pessoas brancas e negras na mesma classe social não têm as mesmas condições”.
A procuradora de Justiça Miriam de Freitas Santos, do Ministério Público do Paraná, que está à frente do Núcleo de Prevenção ao Assédio Moral e Sexual e à Discriminação (Nupad), informou que todos os promotores de Direitos Humanos foram orientados a exigir de prefeituras e câmaras municipais a aprovação de cotas raciais. “Se não houver o cumprimento, o promotor instala inquérito civil, podendo mover ação civil pública de obrigação de fazer e aí não haverá saída. [O gestor] estará obrigado a cumprir. Não se trata mais de querer ou de não querer [efetivar ações afirmativas]”, informou.
Coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado, Lêda Leal, informou que há discussões como essa em outras cidades e que as pessoas precisam discutir o assunto “Querem apagar nossa história, riscar do mapa a nossa existência. Temos que chamar Curitiba à responsabilidade”, disse. Falando pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR, a doutora Megg Rayara defendeu a reafirmação da cultura negra da cidade e concordou que “cota racial não resolve o problema do racismo”, pois “a pessoa branca não atravessa o obstáculo do racismo”.
“Lamento estar aqui, para mais uma vez falar de uma política afirmativa que deveria ter sido implantada há tempo. Os negros de Curitiba sofrem sistematicamente com o apagamento”, continuou Olenka Lins, defensora pública do Paraná. Ela alertou que, sem a atualização do Censo, a estimativa de 20% provavelmente está subnotificada e o percentual de negros, indígenas e ciganos deve ser superior. “A lei federal de cotas tem nove anos, é de 2012, e mudou bastante a realidade das universidades do país e ainda assim as matrículas de negros e de negras é de apenas 15%, quando são 56% da população”, somou Juliana Mittelbach, da Rede de Mulheres Negras.
Superintendente de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade, Paulo Vinícius Baptista frisou que, na emancipação política do Paraná, foi um intelectual negro, Zacarias de Góis e Vasconcelos, quem organizou administrativamente o estado. Mas que depois disso houve a hegemonia do pensamento racista, resultando em “extermínio e isolamento das populações indígenas, subalternidade da população negra e submissão dos povos ciganos”. “São 170 anos de desigualdade acumulada”, protestou.
Falando pelo Executivo, e mostrando-se animada com a chance de aprovação das cotas raciais, Marli Teixeira Leite disse que “estamos em novos pontos”. No papel de assessora da Promoção de Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba, ela destacou a tramitação, na CMC, do Plano Municipal de Igualdade Racial e aprovação, neste mês, da criação do Dia das Religiões de Matriz Africana. Durante a audiência, o vereador Herivelto Oliveira (Cidadania) disse acreditar haver interesse da Prefeitura de Curitiba na aprovação das cotas raciais. Jornalista Márcio Barros (PSD), Maria Leticia (PV), Professora Josete (PT) e Noemia Rocha (MDB) também acompanharam a audiência. Os deputados Professor Lemos (PT) e Goura (PDT) manifestaram apoio às cotas raciais.
População indígena
Pesquisadora indígena, Nyg Kuitá, da etnia kaingang, manifestou-se a favor da inclusão dos povos originários no projeto de lei e afirmou que “a política de cotas é fundamental na ocupação dos espaços de direito”. “Curitiba é território kaingang. Nós sofremos esbulho do nosso território”, denunciou, queixando-se do pouco conhecimento das pessoas sobre a história do município e da existência, por exemplo, de uma aldeia urbana nos limites da capital do Paraná. “Basta de branco estar construindo, estar decidindo sem nós. Basta de branco achar que é mimimi, porque não é”, disse.
A questão indígena foi reforçada por Lays Gonçalves, mestre em Antropologia Social pela UFPR, que ressaltou a necessidade da cidade estar apta a receber dignamente essa população. “36% dos indígenas vivem nas cidades, então o trânsito é permanente. É uma postura racista achar que o lugar dos indígenas é somente na aldeia. O aldeamento é uma perspectiva colonizadora”, afirmou. Ela lembrou que desde 1950 houve várias remoções forçadas de terras indígenas no Paraná.
A audiência pública teve diversos participantes e interação pelas redes sociais da CMC. Para acessar o vídeo, na íntegra, clique aqui. Para conferir o registro fotográfico, clique aqui.
Colaboração CMC