
Fico tentando recordar a primeira vez que ouvi a palavra vadia, ou algo similar como puta, biscate, piranha, rapariga, vaca, galinha, piriguete e etc. Minha memoria fica confusa, porque não sei qual das tantas vezes que essas palavras foram direcionadas a mim, foi a primeira. Sei que quando ouvi uma dessas a mim, ainda era criança e certamente com menos de 10 anos. Também era criança quando comecei a entender o significado moral que essas palavras carregam. De que eram palavras “ruins” de se ouvidas quando direcionada a nós meninas e mulheres. Pois é/era algo que moralmente uma mulher, ou qualquer mulher não deveria ser.
Demorei muito para compreender o que significava essas ofensas, sem essa questão moral que carregam. Você já pensou o que de fato significa ser chamada de puta? Ou por que é ofensivo realmente pra uma mulher, ser chamada de vadia? Qual o motivo que esses xingamentos realmente ofendem? Já conversou com outras mulheres sobre as lembranças delas e experiências ouvindo essas palavras, desde as primeiras lembranças? Como por exemplo, quais situações elas ouviram essas ofensas? Ou com que idade tinha quando começaram a ser assediadas com essas palavras na rua ou em casa?
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Meninas e mulheres sempre trocam de caminho, meninos e homens não
A estrutura de educação machista estabelece padrões de comportamento e cobra os indivíduos a seguir esses padrões. Existe um roteiro ensinado desde criança e reforçado cotidianamente para garantir que essa estrutura funcione. Separam a educação da infância, adolescência e vida adulta em o que é “coisas” de meninas/mulheres e “coisas” de meninos/homens. Há um senso comum sobre o que é ser uma mulher e sobre como é ser um homem. Acrescente-se ai “mulheres e homens de bem”. Existe uma cobranças em como uma mulher deve agir, se portar, se vestir, se comunicar e principalmente como e o que não fazer para não ser taxada de vadia. Assim como cobranças aos homens, para serem homens. Qualquer mulher que foge um segundo que for desse padrão ideal de mulher, ela é ofendida, é tachada de vadia. Os homens que fogem do ideal esperado do que é um homem, são “ofendidos” ao atribuir eles no feminino. Como se o feminino fosse por si só uma ofensa.
Quando tinha 11 anos, com o uniforme da escola, antes das 7:30 da manhã, no caminho pra escola ouvi: “Essa já ta pronta pra dar”, “já tem corpo bom pra meter”, “uma vadiazinha começando”. Usava o uniforme “masculino” porque não marcava meu corpo. E mesmo assim ouvi que nos meus 11 anos de idade, no caminho pra escola, já estava pronta pra “dar”. Eram 4 homens adultos, trabalhando em um deposito de sementes. Exercendo suas construções masculinas, do que é ser um homem em sociedade. Apressei o passo e cheguei assustada no colégio. Mal consegui prestar atenção na aula, pensava no medo de encontra-los de novo. Alguns deles inclusive, eram amigos de meu pai, amigos da família. Tive pesadelos e troquei o caminho pra escola. E foi bem estranho trocar o caminho, porque não era a primeira vez que havia feito isso. Trocar o caminho. Anos antes, por volta dos meus 6/7 anos, um senhor que trabalhava com jogo do bicho em frente sua casa, perguntou se eu queria entrar e mostrar minha bucetinha em troca de balas. Essa foi a primeira vez que troquei meu caminho pra escola. E cresci assim, como milhares de meninas e mulheres trocando caminhos conforme encontramos homens, mesmo que conhecidos, que apresentam algum perigo.
Dos espaços público ao privado, todas meninas e mulheres (cis ou trans) para homens, são vadias
Cresci em uma cidade pequena, cerca de 12 mil habitantes. Ouvi com frequência que era mais seguro criar crianças em cidades pequenas. Por experiência nesses meus 33 anos de vida, doze deles vivendo na capital Curitiba e algumas viagens por esse Brasil, posso dizer: não há lugar seguro para meninas, adolescentes e mulheres nesse país. Do espaço privado ao público, das cidades mais remota até metropoles, basta um homem querer, que a nossa segurança acaba. Basta um homem querer, que somos taxadas de vadias. Não importa nossa idade, a roupa que vestimos ou que estamos fazendo. Se um homem quiser nos ofender assim, irá. Assim como muitos destes homens, se sentem no direito de passar a mão em nós sem nosso consentimento.
Não é raro ser noticiado histórias de homens assediando mulheres de inúmeras formas em locais públicos. Também não é raro noticias de estupros que ocorreram em locais públicos. Assim como é menos raro ainda, noticias de violências sexuais dentro de ambiente residencial. Até hoje é algo ainda comum, grupos de homens que divulgam vídeos de violências sexuais entre eles, e, de quebras culpando as vitimas.
Uma rápida busca por pesquisas de violência, com foco no gênero, retratam bem a realidade brasileira. Não existe barreiras entre o universo público e privado em relação a violência contra meninas e mulheres no Brasil. Bem como não existe idade certa para sofrer essas violências. E parece que também não existe idade certa para que meninos e homens comentam algum tipo de violência de gênero contra meninas e mulheres.
Pesquisa divulgada pela ActionAid em 2016, mostrou que 86% das mulheres brasileiras ouvidas, sofreram assédio em público em suas cidades. Segundo o IPEA, as violências sexuais ocorrem em maior numero na infância e adolescência. Pesquisas da Childhood por exemplo, aponta o Brasil no 2º lugar no ranking de exploração sexual infantojuvenil, são 500 mil registro ao ano e estima-se que apenas 10% dos casos de abuso e exploração sexual desse grupo sejam notificados. Outra pesquisa estarrecedora do IPEA, mostra que cerca de 40,0% dos estupradores das crianças pertenciam ao círculo familiar próximo, incluindo pai, padrasto, tio, irmão e avô. Assim como a perspectiva de gênero sobre os dados mostram que meninas/mulheres e meninos/homens são afetados de maneiras diferentes pela violência no país. A perspectiva de raça da conta de que pessoas pretas/negras são maioria entre as mulheres assassinadas em 2016 (64%) e homens negros foram 68% do total de pessoas assassinadas no Brasil naquele ano.
Esses assédios e violências acontecem de forma tão ampla, porque o corpo feminino é visto como algo público. E por ser algo público, um corpo público, pertence aos homens. Que acreditam que podem fazer o quem bem quiserem, sejam em espaços privados dentro de suas casas, sejam em espaços públicos. Se essas ofensas dependem única e exclusivamente da vontade deles e não da nossa, podemos dizer que o que de fato ofende não é o nosso comportamento, é o que eles estão sentindo frente a nós. E geralmente o que sentem é que não estamos correspondendo a ideal de mulher que esperam. Aquela ideia de que meninas e mulheres devem ser submissas a eles independente do que digam ou façam. Essa submissão é motivo também das subnotificações de violências.
Existe um medo de expor uma violência, principalmente uma violência sexual, por ser ainda comum denunciar e em seguida ser julgada, culpabilizada pelas violência sofrida. “Qual roupa estava usando”, “Qual a quantidade de bebida alcoólica que ingeriu?”, “O que você falou para ele fazer isso com você?”, “Por que você não reagiu?”, “Olhas as fotos que ela publicava nas redes sociais”. Essas ainda são perguntas e afirmações frequentes, feita para mulheres e meninas ao denunciar uma agressão seja ela física, psicológica ou sexual. Essas perguntas carregam o mesmo teor moral das ofensas vadia, puta, biscate entre outras. Pois tentam descreditar a denuncia atribuindo as mulheres e meninas um comportamento feminino moralmente não aceito. Ao mesmo passo que defende e coloca como aceitável o comportamento violento masculino em relação as mulheres e meninas, quando conseguem atribuir a elas em qualquer medida essa tal moralidade feminina. Nos chamam de vadias para também se defenderem.
Da santa ha vadia, todas são vadias
Em essencial, na vontade masculina de ofender uma menina ou mulher, não existe diferença. Entretanto a estrutura educacional machista, existe uma ideia que divide o que é uma mulher (santa) pra casar e a mulher (puta) pra não casar. Divide entre as mulheres decentes (santas) e as mulheres indecentes (putas). As santas, as decentes, são as mulheres que ao serem colocadas em situação de submissão masculina, permanecem submissas, caladas, silenciosas. Tipo no episódio dos meus 11 anos que não falei nada e apenas continuei caminhando. Mesmo na posição de uma menina descente (santa), fui chamadas de vadia. A mulher indecente (puta), entretanto, nunca serão descentes (santas). Em regra são as mulheres que não depende financeiramente de homem para nada. As mulheres indecente são as que dizem não as investidas masculinas, as que questionam os comportamentos machistas, que não abaixam a cabeça em situações sexistas, que denunciam, que se compreende enquanto gente, como pessoas com direitos e não como um objeto publico de domínio masculino. São as que exigem serem tratadas com o mínimo de dignidade humana, como não serem incomodadas enquanto andam pelas ruas.
Vadia, é qualquer menina ou mulher que ousa questionar a visão masculina sobre nossos corpos femininos, sejam eles corpos cisgênero ou transgêneros. Vadia é a que ousa colocar os corpos masculinos no mesmo lugar que eles colocam os nossos, no lugar de corpos públicos. De comportamentos tão questionáveis, apontáveis, como os nossos. Tão criticáveis, quanto os nossos. Vadia também a mulher que mesmo colocando os corpos masculinos nesse espaço público, discutes e compreende os limites do que é consentimento, principalmente consentimento sexual.
Nessa coluna, essa vadia qualquer, pra além de escrever sobre conjuntura política e analises de gênero na política, saibam que pesquiso e escrevo colocando o homem nesse lugar público, um lugar de um corpo construído socialmente dentro dessa nossa cultura machista e que pode e deve ter sua construção masculina criticada. Por aqui, amparo minhas criticas e analises olhando para o comportamento individual e coletivo de homens na construção da política institucional, bem como na construção da sociedade brasileira.