Forças Armadas são órgãos executivos da burocracia pública, incumbidos de executar uma política pública específica: a Política de Defesa.
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Não devem se meter em nada mais além disso. E o que é a Defesa? É um conjunto de políticas de Estado (independente do partido que está no poder, pois visa a sociedade como um todo) atinentes à proteção territorial e a integridade da sociedade contra agressões EXTERNAS.
Forças Armadas não têm que invadir morros, lutar contra o tráfico e nem contra banditismo ou distúrbios. Assuntos que ameaçam a sociedade, que tenham origem INTERNA, não são assuntos de Defesa, mas de Segurança Pública. É assunto das POLÍCIAS.
No Estados Unidos, nação que tem sido idolatrada pelo atual governo, a Constituição proíbe claramente a atuação das Forças Armadas norte-americanas dentro do próprio país. A Carta Maior do povo norte-americano instituiu a Guarda Nacional precisamente com o fim de “garantir o cumprimento das leis da União, reprimir insurreições, e repelir invasões”. Por isso, ela não possui a mesma doutrina das Forças Armadas. Ela não combate “inimigos”, pois destina-se a manter a segurança dos cidadãos: ora contra eles mesmos, ora contra invasores.
Forças Armadas são (ou deveriam ser) treinadas para a ELIMINAÇÃO do INIMIGO que ameaça. As polícias são (ou deveriam ser) treinadas para a REPRESSÃO de crimes de cidadãos com a MENOR LETALIDADE possível.
Na ditadura militar, as Forças Armadas passaram a desempenhar funções de polícia, enquanto estas se militarizaram, assumindo feições e objetivos de forças armadas. Desde então, e a redemocratização não logrou sucesso em alterar essa conduta, as Forças Armadas continuamente falam em “inimigo interno” quando, em realidade, o inimigo devia vir de fora.
Uma reportagem assinada por Rafael Moro Martins, publicada em dezembro de 2021 pelo The Intercept_Brasil, mostrou um dos métodos de doutrinação (ou melhor, de “marcação” do inimigo pelas Forças Armadas). Sob o título de “Documento de Treinamento Anti-Esquerda do Exército tem MLT, Partido dos Operários e Mídia Samurai como Inimigos“, o texto noticiava que na instrução do Curso de Forças Especiais do Exército Brasileiro, o treinamento de combate é feito contra um inimigo fictício, constituído por um grupo armado ilegal, formado de uma dissidência do “Partido dos Operários”, que arregimenta e adestra militantes do MLT – Movimento de Luta pela Terra. A alusão ao Partido dos Trabalhadores, ao Mídia Ninja e ao MST está evidente. O que a reportagem evidencia, é preciso salientar, é que as unidades de forças especiais são treinadas para enxergar o inimigo na esquerda e em movimentos legítimos de luta pela efetivação do direito à terra, não no estrangeiro. Um oficial do Exército terá dificuldade de responder com convicção, se perguntado quais os nossos potenciais inimigos externos. Talvez responda fazendo alusão à China, Venezuela ou Cuba. Entretanto, está convicto de que a esquerda política é a sua principal inimiga.
Ao longo dos anos, as escolas militares brasileiras tornaram-se verdadeiros centros de doutrinação política de direita. Lá é que são lançadas as bases fundamentais da construção de oficiais superiores de perfil antidemocrático, truculento, pró-EUA e, pasmem, de uma visão econômica ultraliberal.
Esse modelo, que vigeu em ditaduras terceiromundistas mundo a fora, foi reeditado por teóricos da guerra do Pentágono. De olhos no que ocorreu nas ditaduras capitalistas da periferia e em Israel, incentivaram a dissolução da fronteira entre Segurança (interna) e Defesa (externa), entre o amigo e inimigo, entre soldado e cidadão. Essa noção norteadora de “guerra contínua” tem sido cada vez mais apregoada. Com isso, a polícia vem se tornando cada dia mais militarizada e letal, assumindo o comportamento de forças armadas, adotando jargões que refletem a abordagem crescentemente bélica: “guerra ao tráfico”, “bandido bom é bandido morto”, “operações especiais”, e etc.
O modelo de avanço contínuo da militarização da vida pública é conveniente à elite econômica que consegue, de forma “barata” (falo em termos de uma análise de custo-benefício), sufocar as manifestações por equidade e justiça social. Em outros termos, o modelo de intromissão das Forças Armadas nos negócios públicos atende ao projeto da classe dominante de impor aos mais pobres os custos dos ajustes que remuneram o capital. Por isso, a esquerda é o inimigo das Forças Armadas.
O que está em jogo não é o fantasma do comunismo que “ronda o Brasil”. Para os que se atêm ao tema com dedicação não se trata disso. O que está em jogo são dois projetos de país: um, que procura ser mais autônomo econômica e politicamente em relação ao Estados Unidos, e outro, que deseja um atrelamento quase incondicional ao modelo neoliberal proposto pelos autocratas de Wall Street / Washington. O primeiro modelo é includente, pois busca satisfazer alguns critérios de equidade social, além de propor um desenvolvimento voltado aos interesses estratégicos do país. O segundo, atende primeiramente aos interesses internacionais e à elite brasileira atrelada a ele. Visto que não é ao interesse nacional que busca atender, senão marginalmente, este modelo é excludente e promotor de desigualdade. Aquele modelo é defendido pela esquerda e este pela direita.
As Forças Armadas do Brasil se colocam como aríetes da tentativa de substituição da primeira para a segunda proposta. Foram o pivô central de articulação das elites nacionais e interesses internacionais contra os interesses fundamentais do povo brasileiro. Por este motivo tiveram que fazer a eleição de 2018 girar em torno de temas morais (corrupção, sexualidade, educação sexual, “degeneração” cultural, e etc.), para que o desemprego, a inflação, a precarização do trabalho e a pobreza não fossem debatidos.
A militarização da vida social, que está sendo imposta aos brasileiros, é o modo com que o imperialismo lida com as insatisfações decorrentes das políticas de “ajustes” e reformas orientadas ao mercado, que caracterizam o modelo excludente. Os militares brasileiros têm os olhos voltados para o Chile, não para a Colômbia. Diante do que interpretam como “fraqueza” da elite civil, estão dispostos a impor a reformas neoliberais ao custo de vidas, da esperança e do futuro de uma geração.
Cabe às instruções democráticas (ou, ao que resta delas) resistirem a isso. Essa reelaboração do papel das Forças Armadas coincide com o avanço do neoliberalismo, que não pensa duas vezes em abandonar a democracia para preservar a segurança do capital.
Nosso assunto não deve ser o Viagra das Forças Armadas, pois tem algo mais importante e mais ameaçador em jogo: já estamos sob uma desastrosa intervenção militar (disfarçada de “bolsonarismo”) que dá sinais de persistência e resistência aos antídotos democráticos.
Sim, caros leitores, os militares não tomaram o Estado brasileiro de assalto para baterem em retirada ao fim do primeiro “mandato”.