Narrativa publicada pela Companhia das Letras aborda a influência ancestral que existe na construção de individualidade
Quantas outras vidas existem em nós? E quantas delas são de nossas famílias? A influência familiar em nossa formação como seres humanos é a temática abordada por Tércia Montenegro no livro Um Prego no Espelho, lançado neste mês pela Companhia das Letras. A história se passa entre as décadas de 80, 90 e início dos anos 2000 e é ambientada em cidades do Nordeste brasileiro. De acordo com a autora, a obra trata de “uma fissura na identidade, algo que corrompe a individualidade, cria um rasgo no sujeito”. Como um prego no espelho — algo que se fixa numa superfície volátil.
• Clique aqui agora e receba todas as principais notícias do Diário de Curitiba no seu WhatsApp!
Em nível inconsciente, “a vida de uma pessoa pode ser uma espécie de repetição do destino de seus antepassados”, diz Tércia. Thalia, personagem principal, vive diversas vidas por meio de seu trabalho como atriz em uma carreira bem-sucedida. Fora dos palcos, a protagonista encara uma série de traumas reprimidos, externados ao ver o rosto de seu irmão falecido.
Tércia conta existir conexão entre essa perda e a escolha de profissão de Thalia. Afinal, “a família é a responsável por nos ensinar, ao mesmo tempo, o que é território nosso e o que é espaço (ou demanda) do outro. A ambiguidade dessas negociações nunca torna as decisões fáceis”, descreve a escritora.
Após rever o rosto do irmão, Thalia decide explorar a genealogia da família e os enlaces que a constituem. Na narrativa, a memória é um campo magnético atraindo pais e filhos a um imã de medos, mistérios e frustrações compartilhados. Neste cenário, Tércia explica que o autoconhecimento de Thalia passa pela comparação com pessoas próximas, especialmente ao identificar os contrastes entre ela, sua irmã, Salete, e seus pais, Diana e Iago. “Os leitores vão, em certa medida, se identificar com este aspecto – que consiste em aprender a viver a própria vida, mesmo que inspirando-se em modelos alheios”, descreve a autora.
Em relação aos personagens, Tércia relata que a tríade formada por Thalia, Salete e Diana é o foco da história. Entretanto, a história, conforme avança, oferece maior individualidade na narrativa para personagens que iniciam discretos. “Espero que os leitores encontrem uma certa imprevisibilidade, um certo suspense aí – porque a verdade é que numa família não existem personagens secundários”, diz a criadora de Um Prego no Espelho.
Diferente de suas obras Turismo para Cegos e Em Plena Luz, Tércia agora se concentra em uma narrativa familiar, articulada entre vários personagens que impactam no destino de Thalia. Para o leitor, o enredo oferece os principais sentimentos que, de acordo com a escritora, permeiam a complexidade das relações familiares – amor, raiva, vingança, frustração, medo.
Além disso, Tércia explica que são imprevisíveis os impactos dos leitores ao entrarem em contato com a obra, pois “os livros ganham uma certa autonomia interpretativa que depende do repertório de cada leitor(a)”, reflete. Já para ela, a escrita a surpreendeu conforme as conexões entre os personagens se desenvolviam.
Ela relata: “no fundo, creio que eles se tornaram realmente uma família, e nesse aspecto chegaram a desenvolver um entendimento, uma espécie de pacto interno que eu não chegava a acessar”. Em certos momentos do processo de escrita, a autora se sentiu como uma espectadora, alguém que não interfere no desenrolar dos destinos dos personagens. “É uma experiência mágica, quando um livro ganha o próprio rumo. Talvez nesse sentido fique reforçada a ideia de que uma obra literária é quase um filho: nasce de uma pessoa, mas tem uma identidade diversa e imprevisível”, finaliza Tércia.
Autora
TÉRCIA MONTENEGRO nasceu em 1976, em Fortaleza. É fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará. Publicou diversos livros de contos e crônicas, além de obras voltadas para o público infantil e juvenil. Seus textos já integram antologias nacionais e estrangeiras. É autora de Em plena luz (2019), e seu primeiro romance, Turismo para Cegos, recebeu o prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, de melhor romance brasileiro de 2015. Ambos foram publicados pela Companhia das Letras.
Foto: Divulgação | Autora de Um Prego no Espelho