Noah Mancini
HQs, gibis, histórias em quadrinhos, são uma expressão artística onde mesclam texto, imagem, visualidade e narrativa para propor histórias. Podem ou não ter balões de fala, mas geralmente apresentam painéis sequenciados, onde algo está a se desenrolar. Enveredados pelos campos da arte gráfica, passando do cartum ao realismo, variam entre angulações, técnicas, cores e enquadramentos, temas e gêneros. Nesse universo gráfico de profusa produção poética, tais gêneros podem se interceder, desde os habituais super-heróis, muitas vezes mesclados com a ficção científica, a fantasia, o humor, e até temas mais adultos, como panos de fundo eróticos, dramáticos ou existenciais.
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A produção de quadrinhos no Brasil sofreu forte influência estadunidense e japonesa, apesar de também abordar questões culturais locais. O cenário de HQs no país pode ser considerado diverso, com grandes editoras produzindo há anos trabalhos em série, ao mesmo tempo que organizações autônomas procuram viabilizar autores independentes. Nas últimas décadas, adaptações de clássicos da literatura para o formato de gibi têm sido cada vez mais frequentes. Entre os mais emblemáticos autores estão, por exemplo, Mauricio de Sousa e Lourenço Mutarelli. No que tange o escoamento e a circulação por parte do público, há também eventos como a Comic Con Experience (CCXP) que reúne inúmeros profissionais do ramo e ajudam na circulação do trabalho de vários criadores.
Na cidade de Curitiba, um dos projetos que vêm se destacando é o coletivo Encrenca. A identificação com os quadrinhos e a vontade de fertilizar a cena com novos referenciais foram denominadores comuns para unir as participantes do projeto. Usualmente com uma sobrepujante presença hetero-cis-masculina na produção de HQs, a ideia é descentralizar a atenção para onde esta produção é levada, além de interceder narrativas locais com a de outras territorialidades. É um trabalho gradativo, que tem demonstrado sua importância através do tempo e de tais agenciamentos coletivos exercidos ao longo do processo.
O projeto começou em 2022 e segue em atividade até hoje, derivando posteriormente em diferentes iniciativas de fomento quadrinista. Diante das adversidades de manter um projeto independente, as integrantes recorreram a alternativas que auxiliassem o projeto a se estruturar financeiramente, e ao mesmo tempo dar vazão para artistas que produzam fora da hegemonia. O coletivo atualmente é composto por: Ana Alice, Cami Friendpoke, Laura Mazzo, Riot Sistah e Tami Taketani.
O grupo reúne quadrinistas mulheres cis e pessoas trans para escoar a produção de tais criadores independentes. Abrem chamadas para a seleção de trabalhos a fim de compor uma publicação, organizam eventos para arrecadação de verba, além de participar de feiras gráficas. Entre as participações da Encrenca em mostras, estão a II Feira Ogra de Quadrinhos Independentes (2023) e a feira Poc Con (2024), ambas em São Paulo.
No ano de 2023 tive contato com a Encrenca Coletiva através de um evento por ela organizado, no lançamento da primeira edição da revista, marcado pela busca de criar um novo circuito de quadrinhos na cidade. Na época, o evento foi no Dub Bar, localizado na Rua Trajano Reis. Depois de alguns meses o trabalho veio à público em formato impresso e contava com a proposta narrativa de uma espécie de telefone sem fio em HQ, onde a pessoa desenhava a partir de algum disparador da história apresentada anteriormente por outra ilustradora.
Hoje, a revista já está em sua segunda edição e será lançada presencialmente na Itiban Comic Shop (Av. Silva Jardim, nº 845), no dia 13 de Julho, das 15h às 20h. O evento será um lançamento em conjunto com outros coletivos gráficos, como a Revista Adesiva, o Zine Gororoba, contará com bate-papo às 16h e um show de Kimera Santos às 18h. A entrada é gratuita.
Arte gráfica: Ana Alice.
Pude entrevistar Maria Eduarda, mais conhecida como Riot Sistah, é uma artista autodidata que aborda protagonismo negro em suas criações que vão desde colagens, histórias em quadrinho, ilustrações até esculturas. Em 2021 publicou seu primeiro gibi
pela Escória Comix (São José dos Campos). Participou de diversas antologias de histórias em quadrinho no circuito independente, como a Revista Pé de Caba, El Perro Feo e Almanaque Kitembo 2k22. Foi convidada para Bienal de Quadrinhos de 2023 onde participou de duas exposições que compuseram a grade do MuMA (Museu Municipal de Arte em Curitiba). Ela é uma das fundadoras e atuais organizadoras da Encrenca.
Entrevista com Riot Sistah
Noah Mancini: Como nasce sua produção em quadrinhos?
Riot Sistah: Eu comecei a fazer quadrinho por ser uma leitora de quadrinhos. Então desde criança eu lia bastante gibi, na adolescência continuei lendo, mas lia coisas mais voltadas a heróis. E esse gibis de herói tem uma estrutura bem diferente do meu trabalho, não tem nada a ver, e quando eu lia só gibi de herói eu achava que fazer quadrinhos era algo inalcançável. E eu conheci o cenário underground de quadrinhos no Brasil e nos Estados Unidos. E eu fiquei muito fascinada quando eu descobri as revistas brasileiras e os artistas brasileiros que estavam fazendo quadrinho naquela época, em 2018 e tal. E eu pensei, poxa, eu quero fazer quadrinho também, existe gente fazendo com total desprendimento do traço. A minha referência de quadrinhos até então era aquele traço de super herói que tem aquela lógica muito específica que não se aplica tanto ao quadrinho underground.
E aí foi assim que eu me despertei pra querer fazer quadrinhos, a partir de entrar em contato com esse cenário alternativo. Mas eu ficava muito incomodada que os quadrinhos que eu lia eram todo mundo era gente branca, eu tinha pouco contato com quadrinhos protagonizados por personagens negros.
Foi nessa mesma época que eu conheci o cinema blaxploitation, então todo esse período eu já desenhava, fazia algumas tirinhas e tal, mas nunca tinha feito uma história em quadrinhos. Então eu tomei a decisão consciente então só de representar pessoas não brancas nas coisas que eu faço, mais especificamente pessoas negras.
Comecei a produção do meu gibi autoral em 2020 e lancei em 2021 pela Escória Comics, um gibi que chama Máquina Assassina muito influenciada pelo cinema blaxploitation. E eu piro muito nisso, na música dos anos setenta e tal. Então a gênese do meu trabalho foi o contato com o quadrinho alternativo, mas eu comecei a entender como seria meu trabalho depois.
Noah Mancini: Como você entra no Projeto Encrenca?
Riot Sistah: Quando eu comecei a fazer história em quadrinhos, eu morava em Piraí do Sul, que é uma cidade do interior do Paraná. E eu conhecia virtualmente uma menina que chamava Ana, que hoje em dia é minha amiga Ana, da Encrenca também. Na época eu só acompanhava ela pelo Instagram, não a conhecia pessoalmente. Aí em 2022 quando me mudei pra Curitiba, eu descobri que uma amiga muito próxima minha (a Cami) era amiga da Ana e tinha estudado com ela na faculdade. A gente acabou se conhecendo, e aí criou-se um grupo de amigas. Depois conheci a Laura e a Tami na Itiban. E esse grupo que na época éramos nós seis, pensamos: “putz, nós somos amigas que gostam muito de quadrinhos independentes, algumas de nós já fazem, outras ainda tem medo, por que a gente não faz um projeto nosso?”. Então assim a Encrenca nasce. Primeiramente com a Ana, comigo, a Tami, a Cami e a Karina. Depois de um tempinho a Karina sai e a Laura entra.
Noah Mancini: Para você, o que mais pulsa nesta forma de expressão artística?
Riot Sistah: O que mais me interessa na história em quadrinho atualmente é poder desenhar despretensiosamente uma coisa sem neurose com perfeição de traço. Eu sou bem neurótica quando tô fazendo ilustração e sinto que tenho uma liberdade maior quanto à essas expressões quando estou fazendo história em quadrinhos.
Isso é bem legal para mim enquanto artista e gosto também de me colocar nesse meio por ser uma das poucas quadrinistas negras que são desse cenário mais “podreira”, digamos, das histórias em quadrinhos. Porque eu não abordo temas nada polidos, e esse cenário o qual faço parte é extremamente dominado por homens, obviamente, e muitas pessoas brancas. Então ser uma mulher negra quadrinista no meio da “podreira” me deixa estimulada para levar perspectivas pessoais para pessoas que não pensaram por esse lado, não viram as coisas dessa maneira.
Me interessa também quebrar a expectativa do que as pessoas acham que eu enquanto mulher negra devo produzir enquanto arte. Eu não faço só HQ, faço ilustração, colagens, miniaturas. E em todas essas linguagens eu sempre abordo a questão racial, mas em cada expressão sinto que levo pro caminho diferente. Nas colagens faço coisas mais abstratas, os quadrinhos são mais da “podreira mesmo”, miniaturas são objetos mais simbólicos, enfim…
Noah Mancini: De que maneira a coletividade impacta no trabalho da Encrenca?
Riot Sistah: Eu acho que sem a coletividade a Encrenca não existiria. Primeiro porque a gente não fez a revista sozinha, né? Na primeira edição 19 artistas participaram, sendo algumas pessoas da organização. Na segunda edição 37 artistas participaram, sendo somente eu da organização. Então são muitas pessoas envolvidas, para além das pessoas que organizam. São pessoas que botam fé na proposta do coletivo da Encrenca e querem participar. Então acho que antes de tudo sem esses artistas estarem interessados na Encrenca isso não aconteceria. E também a questão financeira, porque a gente imprimiu a revista através de ações de arrecadações, como festa, rifa. A gente também recebeu o apoio do Viva La Vegan, na época eles fizeram um lanche em homenagem à Encrenca e durante um mês destinaram uma porcentagem para a revista, e essa porcentagem a gente utilizou no pagamento da impressão. Então tudo é sempre muito coletivo. Não acredito que a Encrenca teria dado tão certo se a coletividade não tivesse de fato envolvida no mais íntimo da produção.