No dia 31 de Julho, a artista Princesa Ricardo Marinelli estreou seu solo Sobrou Só o Corpo na Casa Hoffmann. A apresentação faz parte da Mostra Solar, que acontece há alguns anos no espaço cultural e nesta edição integra mais cinco obras de diferentes artistas, coletivas e individuais. O solo dialoga com um trabalho anterior, que deriva de uma residência artística coletiva realizada na Alfaiataria, dos dias 01 a 21 de Julho de 2024. Nada mais é que um dos reflexos prismáticos da pesquisa autoral de Marinelli ao longo de suas décadas de trajetória, o qual pudemos acessar na última quarta.
Quando entramos, as cadeiras vazias nos aguardam – a artista também. Deitada no chão, nua, está recolhida quase numa posição fetal, de costas para nós. Desde o início, a apresentação é marcada pela ausência de aparatos cênicos. O ambiente encontra-se vazio, não há nada ali além da presença da artista e do público que a encara. A iluminação toda às claras, luzes acesas. O som é o do corpo. Essa nudez cenográfica, presente em todo o espetáculo, leva o foco para Princesa e suas ações derivativas no espaço. Movimentos pulsantes interiores, que partem de dentro para fora, simultaneamente graciosos e desconcertantes, em constante embate íntimo, com seu próprio ser e com o ambiente ao redor.
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A centralidade conceitual de Sobrou Só o Corpo, a cada nova sequência, aparenta orbitar ao redor da ideia de que, quando tudo o mais é retirado, restaria apenas o próprio corpo: não apenas a materialidade física, na presença do ser vivente, mas um campo de batalha emocional, existencial, coreo-filosófico. Nos limites e potências de sua corporeidade, canaliza-a para debater sem verbo identidades, vulnerabilidades e os anseios contemporâneos por significações. Cacoetes, envergações, caras e bocas, sobrancelhas que se arqueiam, testa que franze, andar cortante, feminilidades da pele. Joelhos erguidos na altura da cintura que desembocam em pisares com as pontas dos pés, em passos felinos, como se em ovos pisasse.
Fotografia: Cibelle Gaidus.
Durante a performance, Marinelli aplica uma série de soluções plástico-corporais para nos contar algumas histórias. Esboça palavras, expressões, mas não as conclui, num rascunho tentativa de linguagem dá apenas indícios, começos de um dizer que logo se interrompe e parte para outra tentativa de dizer. Por vezes são ações velozes, ágeis, outrora mais lentas e contemplativas. Apesar disso, há uma forte preocupação no campo da precisão e da intenção. Utilizando técnicas de alongamento, rotações com braços, pernas e cabeça, elabora transições bruscas que desembocam em contrastantes posturas. Sexualidade sobrepujante, de vigor lascivo, viçosamente exteriorizada.
Em vários momentos, explora o equilíbrio e a sustentação, se apoiando em determinados membros para manter o restante do corpo. Esse jogo de toma aqui e dá lá, onde as forças antagônicas e aliadas fazem parte de um mesmo organismo, não só destaca a sensação de luta interna, como acentua a exaustão que a mesma pode causar. Mesmo no habitual frio de Curitiba, seus esticamentos, tensionamentos, micro-movimentos colocam o corpo num estado de ação constante que a faz suar. Esse suor escorre, pinga pelos supercílios, pelas costas, pelas pontas das longas unhas. E também sai de sua cabeça, em perceptíveis ondas de calor, como se estivesse em chamas.
Esses movimentos de êxtase pulsante e corrente, tal qual as invisíveis veias e músculos que se escondem atrás da epiderme, são entrelaçados com momentos de quebra, um anti-clímax, onde o corpo vive um latente tensionamento entre ação e inatividade. Certos momentos, Princesa para o que está fazendo, larga mão da apresentação, se posta frente aos espectadores e nos encara. Desta vez se despe mais uma vez, mas despida de personagens, de máscaras da cena, de ensaios, de coreografias premeditadas. Ela nos olha nos olhos, em uma sinceridade desvelada, não é a artista, mas sim o sujeito no mundo, anônimo e ordinário conforme qualquer outro que está ali a assistir. E nesse olhar a crueza da sinceridade somos nós quem a devolvemos a cumplicidade dramatúrgica, também coniventes com esse teatrinho montado, com uma pose que nós mesmos escolhemos performar, nas camadas de pudor e esconderijo que ali gozamos.
Isso se enfatiza quando Princesa, andando de quatro, se arrasta até a plateia. Deita a cabeça no colo das pessoas e, encharcada de suor, ali permanece por minutos. Nessa atitude provocativa, ao mesmo tempo que pede alento, coloca-nos para performar junto a ela. Desconforta-se, somos também visados.
O solo performático, que será reapresentado dia 11 de Agosto, às 19h30 na Casa Hoffmann, encerrando a Mostra Solar 2024, é um desses trabalhos que propõe um olhar sobre nossa experiência caminhante pelo mundo, vasculhando algumas perfumosas essências da condição humana através de tudo o que ao final nos resta: o corpo. A performance se revela um diálogo entre corpo e espaço, performer e plateia, verdade e encenação, desnudando a fragilidade e a resiliência da condição humana. É um testemunho onde Princesa Ricardo Marinelli, através de sua prática performática, transforma o corpo em origem, veículo e destino. Um assentamento de que, no fim das contas, o corpo – com todas suas idiossincrasias – é o que nos define e estabelece conexões com o mundo ao redor.
Fotografia: Cibelle Gaidus.
Depois de assistir o solo de Princesa, fui tomado por uma vontade vazante de meu corpo para refletir criticamente sobre o espetáculo, o que resultou no texto discorrido acima. Também a entrevistei, como pode ser conferido no texto discorrido abaixo. Princesa Ricardo Marinelli define-se orgulhosamente bizarra. Artista da dança e terrorista de gênero, é Pós-doutoranda em Dança (UFRJ-2023), Doutora em Performances Culturais (UFG-2023), Mestre em Educação (UFPR-2005), Especialista em Acessibilidade, Diversidade e Inclusão (UNISE-2023) e Licenciada em Educação Física (UFPR-2002).
Entrevista com Princesa Ricardo Marinelli
Noah Mancini: Qual o percurso de “Sobrou Só o Corpo”?
Princesa Ricardo Marinelli: Se for ser bem sincera em relação a como essa questão vai aparecendo na pesquisa, ela vem habitando e aparecendo há bastante tempo, até mais do que essa data, 2016, que foi a primeira vez que de fato me coloquei numa proposta de investigação específica para pensar essa ideia do que acontece se sobrar só o corpo. Foi o contexto do Água Viva, que foi um casa coletiva aqui em Curitiba. E nessa primeira incursão, eu tinha esse interesse de radicalizar o corpo em movimento como a principal estratégia de comunicação, mas ainda estava lidando com algumas próteses. Aí passou um tempo, adormeci dessa questão como uma propulsora de trabalho, até que em 2019 fiz uma residência em Montevideo, no Uruguai, passei então três semanas mais intensamente investigando esse material. Teve uma mostra de processo, mas na hora de sintetizar, de organizar esses materiais, ainda tinha diversos elementos cênicos na composição do material que se mostrou. De lá pra cá tenho tentado criar esses espaços para viver mais radicalmente essa questão. Agora em 2024 que rolaram essas duas oportunidades, primeiro a residência ligada ao Iberescena, onde a gente pôde usar esses parâmetros, essas perguntas, esse modo de mover que vem acompanhando a minha pesquisa junto a um grupo de pessoas, e agora essa estreia na Mostra Solar. Eu falo que o jeito que o movimento aparece no solo, é um tributo às minhas insistências na trajetória artística. Então todas as práticas de movimento do trabalho elas estão muito baseadas nas insistências, no que eu chamo de poética auto coreográfica e fisicalidades possíveis a partir do corpo sexual, tem um movimento aí que é um painel dessas insistências, então dá pra dizer que o trabalho se origina em diversos momentos da trajetória.
Noah Mancini: Como você encara essa total ausência de aparatos cênicos?
Princesa Ricardo Marinelli: A ausência de elementos cênicos para além do corpo em movimento, foi uma provocação que tentei me fazer. Obviamente que existem muitas maneiras de você responder essa pergunta: “e se sobrar só o corpo, o que que é que sobra?”, mas eu estava interessada nisso, em limpar o máximo de elementos que estivessem ali para produzir sentido e deixar só o corpo em movimento como uma possibilidade de criar algum tipo de empatia, não só de significado mas produzir campos energéticos, encantamentos. Eu tenho falado muito disso que eu chamo de bixaria cinestésica, de usar a cinestesia, a encruzilhada dos sentidos, da percepção e do movimento, como uma estratégia de encantamento, de bixaria. E queria que o trabalho fosse isso, o corpo acionando essa bixaria e usando procedimentos de pesquisa de movimento que atravessam meu trabalho há bastante tempo. Então tirar os elementos cênicos é um jeito de tornar mais evidente o corpo em movimento, como estratégia de produção de sentido e de conexão. Obviamente que não estou querendo lidar com uma ideia essencialista de corpo, ou demasiadamente baseada na estrutura biológica, eu tenho falado muito que a pele não é onde o corpo termina, mas é onde a conexão começa. Quando digo que sobrou só corpo, quero dizer que sobrou tudo, sobra um universo inteiro de possibilidades. E como falei no áudio, nos outros momentos da pesquisa, eu sempre acabava cedendo, ou acabava usando algum tipo de elemento. E agora nesse solo estou me sentindo mais justa com esse procedimento, que não é nada de especial, mas é uma escolha que queria que fosse mais radical nesse sentido.