Pá de Cal de Gustavo Ávila tem em sua aba uma pergunta que demonstra a vida atual, e a profundidade da reflexão sobre ela, trazida na obra: “E o que (o ser humano) estava disposto a fazer para preencher o seu vazio?” O lançamento do segundo semestre da Editora Record instiga o leitor a encarar a perturbadora realidade diante de uma sociedade tecnológica e solitária, que é a negligência – e dificuldade – de estabelecer conexões emocionais diante de uma apatia e paralela fuga de dores intrínsecas às conexões humanas.
Ávila conta, através de três personagens e narrativas distintas, sobre um mundo acometido por uma doença que torna os seres humanos apáticos a partir da perda de significado de suas memórias. Relembrando uma situação vivida atualmente, com a Covid-19, o autor aborda o isolamento para conter a doença, e a divisão das pessoas por setores, de acordo com a gravidade. A história, contada em terceira pessoa, coloca o leitor como espectador em um show de questionamentos existenciais, dramas psicológicos e as dificuldades emocionais que resta de uma sociedade tecnologicamente avançada.
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Um ponto a se destacar é crucial para a reflexão da obra, explicado por Ávila. “A doença que aflige os personagens não apaga suas lembranças, eles ainda se lembram dos eventos normalmente, mas a doença faz com que essas experiências percam seu significado, o que no fim das contas é o mesmo de elas não existirem”, diz. Ele descreve como viver está relacionado ao consumo, e não a atribuir significados. “É como comer um alimento que não mata a fome, não importa o quanto você coma”, é o que diz o autor ao já demonstrar como a dificuldade de estabelecer conexões emocionais também faz parte desse universo consumista e pouco simbólico. A vida interna pouco existe, a importância dos acontecimentos a nível emocional e psicológico é negligenciada, e a apatia é o principal sintoma.
Para construção dessa narrativa, o autor diz ter se inspirado em obras como Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, e A Estrada, de Cormac McCarthy. “Há questões inerentes ao ser humano, que não são necessariamente frutos do nosso tempo atual, porém, parecem ficar cada vez mais evidentes hoje (…) A Síndrome de Desconexão Emocional Debilitante, como foi batizada a doença da história, é uma alegoria ao nosso mundo indiferente, onde as experiências existem com cada vez mais intensidade, porém, com cada vez menos conexão emocional”, descreve Ávila.
Neste sentido, o autor aborda o vazio existencial, atrelado por ele à fuga do sofrimento. “O vazio existencial que surge quando as emoções são suprimidas é uma representação da nossa busca por soluções rápidas para problemas emocionais complexos”. Assim, a obra traz que há uma fuga de emoções em geral, boas ou ruins. Pois, evitar o sofrimento é desconsiderá-lo e diminuir a importância dos momentos de não-sofrimento.
Ainda sobre a temática do sofrimento, o autor relata ao Diário um questionamento puramente humano, que seria sobre o que é capaz de ajudar o ser humano a elaborar o sofrimento. Apesar do avanço tecnológico que causa uma falsa impressão de controle da vida/natureza, ainda não somos capazes de lidarmos com nós mesmos. “Com essas ferramentas, estamos nos afastando de relações mais profundas com o outro. Estamos reforçando nossas limitadas percepções. O que, a longo prazo, pode ser um grande problema, com um aumento da alienação emocional na sociedade”, relata Ávila. Vemos uma exaltação do controle e do previsível, e um medo do que é natural da vida – a incerteza, principalmente ao lidar com outros seres humanos.
Diante dessa sociedade apática da obra, ainda há aqueles que estão lúcidos. Os personagens com capacidade de se conectarem emocionalmente, são tomados por angústia, pelo isolamento e pela perda. “Um sentimento de luto, de vazio e desesperança. Mas, com sorte (e terapia) também gera um desejo profundo de mudança, de viver. Neste cenário, alguns indivíduos buscam um propósito que justifique sua existência. Ou você afunda de vez ou emerge sedento por respirar”, diz o autor, elucidando que é intrínseco ao ser humano a reflexão existencial e, de preferência, que isso gere resultados significativos.
A obra é desconfortável, pois nos faz conscientes dos nossos vazios. Nos mostra a solidão e o desespero. Porém, lembra que é enfrentando tais desconfortos que há a esperança de maior plenitude, pois é sabendo lidar com o sofrimento, ao dar-lhe significado, que a felicidade é mais significativa também. Mas, claro, que tais impactos internos são impulsionados pelos externos. E o que é mais externo, desconhecido, estranho e desafiador do que o outro?
Personagens
Inês é uma neurocientista especializada em Alzheimer, e que a partir de um trágico acontecimento, inicia um drama interno que é contextualizado no drama externo e comum à sociedade, gerando uma obsessão. Sandro é enfermeiro, solitário, e vive nesta sociedade segregada emocionalmente diante de uma doença misteriosa. Ainda lúcido, se torna responsável em manter o que resta do pacto social diante de uma população incapacitada. A terceira narrativa é sobre sete estranhos que acordam sem memória em casas espalhadas no meio de uma floresta. O que eles sabem, ao receberem uma carta e uma chave, é que aquele que reunir sete chaves, poderá lembrar quem é.
Ávila explica que o que há em comum com os personagens, é a busca por preencher o vazio existencial, e os leitores se conectam com eles por também terem seus vazios. “Vemos a construção de suas fragilidades psicológicas, por exemplo em Inês, a neurocientista que busca uma forma de fugir da dor. Ela é uma pessoa que viveu experiências que a fizeram ter um apego obsessivo, ela quer manter tudo e, de preferência, manter tudo como está. Por isso, diante de um acontecimento muito doloroso que muda completamente a sua vida, ela quebra”, explica, demonstrando a nossa fragilidade diante da vida que foge, naturalmente, do nosso controle.
Cassiana Tozati