Nos últimos anos – ouso dizer que ainda atualmente – as andanças políticas, econômicas e sociais brasileiras andaram em cordas bambas. Em meio a um cenário de terra arrasada, surge “Galope em Campo Minado”, a mais recente obra de Amanda Leal, publicada em 2023 pela Editora Libertinagem. Dividido em quatro capítulos, intitulados respectivamente “tudo aquilo que não entendemos chamamos de monstro”, “um entre inclassificável”, “aqui fazemos amor com bombas nas mãos” e “poemas para o fim do mundo acabar depressa”, o livro se constrói e emerge, página após página, como um escorrimento reflexivo das contradições humanas e das batidas convenções sociais.
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Amanda Leal, em versos sobretudo longos e sem muitas estrofes, sem tantas pausas para respirar, nos faz acompanhar um cavalgar forte e veloz situado em território potencialmente explosivo e exploratório, de insurreições, de angústias, do que será que virá? Em poética ao mesmo tempo transparente e baderneira, na mixórdia das voltas e reviravoltas, do que diz e contradiz, do que se repete e se discorda, explicita às vezes determinado verso ou parte de uma estrofe sendo um eco atormentado para se propagar. A palavra precisa ser dita, lançada aos mundos, expurgando-se em sua própria necessidade. A escrita chega como instrumento de reviramento, onde molha, bagunça, suja e mancha suas mãos-dispositivos para minar, estrondar incômodos que majoritariamente preferimos manter abafados nas alheações do cotidiano ou intencionalmente escondidos debaixo do tapete.
O título, “Galope em Campo Minado”, por si já enuncia uma saga arriscada, um passante inesperado, deslocamento contingente em uma paisagem emocional permeada por armadilhas, que deixam lastros e crateras. É como se Amanda, com uma espirituosidade insatisfeita, nos conduzisse por um terreno hesitante, em que a normalidade é um conceito desvanecido e a realidade, por sua vez, uma nuvem densa e dramática que paira incessante sobre nossas cabeças operantes. Entre o que vem de dentro e o de fora, o que nos move e o que se move até nós, faz esse jogo de desafiar as ordens do caos.
A chave literária da obra estancia na habilidade de transformar a incerteza em algo material, na letra ou no sangue em papel. Fazendo da palavra ferramenta de denúncia, inclina-se vertiginosamente contra a apática conformidade. Qualquer pretensão de aprazível sensação é tomada por um movimento insurgente de vísceras, verdades e vontades, entre o que pode ser sublime e o que é cruel. Penso que é um grito rememorante e que em muitos momentos a beleza não reside apenas na tranquilidade dos campos verdes e excelsos, mas na tempestuosidade inesperada das bombas escondidas, do vermelho do sangue, e das cinzas incendiárias geradas pelas chamas da guerra mas também da paixão. Nas linhas há fúria, fluidos e uma busca incessante por significados palpáveis em um mundo que ao que tudo indica parece estar ruindo.
É resultado natural de um corpo que pensa, pulsa e também sangra. Sangue esse que é propulsor e não necessariamente dor. Dor também há, é claro, mas a busca pelas saídas escorre mais. Leal busca constante e incansavelmente, transformar o caos que ronda e nos anseia, em uma alternativa de insurgência poética. Seu livro é possível granada, apelo para um tumulto, um lembrete de que, mesmo nos fins dos mundos que parecem se delongar em dolorosos desgostos, há encanto a ser encontrado na bravura de confrontar o que está e o que virá. Porque sim, há de vir algo após, e continuaremos a fazer amor, mesmo que atirando bombas com as mãos.
Entrevista com Amanda Leal
Fotografia: Eduardo Ramos
Tive contato com o livro antes do lançamento, e ansiei lê-lo assim que chegasse em minhas mãos. Depois que o tive, demorei um tempo para digeri-lo, e essa conversa – e a leitura, por consequência – levou mais tempo que o esperado. Os encontros da presença tem outras durações e se deu ao longo dos meses. Pude entrevistar Amanda em conversa chiquérrima que travamos pessoalmente em sua residência, a qual transcrevi abaixo.
Amanda Leal é poeta e artiste que levanta a voz e o sonho de transformar realidades através da arte. Transdisciplinar e fluíde: atriz-atore, poeta, artiste visual, performer e desdobradore de mundos e movimentos. Nasceu e vive em Curitiba, onde graduou-se em Tecnologia em Produção Cênica pela UFPR em 2013. Transita entre palcos e telas, em diversos grupos há 15 anos, no ofício das artes cênicas e no audiovisual, também como diretore e roteirista. Criou o projeto Insurgências, plataforma transdisciplinar de criação que propõe intercâmbios entre artistas LGBTQIAPN+, e realizou duas exposições individuais: Coágulo (2022/SP) e Vermelho Continua (2024), realizada no PF em Curitiba. Questiona e pesquisa relações de gênero e dissidências, para criar futuros possíveis e insurgentes. Escreve desde os 11 anos, quando nem se imaginava artista, mas já percebia o poder transformador da arte e das palavras.
Entre seus trabalhos mais recentes: Galope em Campo Minado levou Leal à 22ª FLIP, Festa do Livro Internacional de Paraty, em outubro de 2024. Está em processo de escrita de sua primeira dramaturgia, com estreia prevista para 2025. Ministrou uma oficina de escrita criativa para as 4 turmas do projeto Novos Olhares, no Ap da 13 em agosto de 2024. No teatro, atuou em sua primeira personagem não-binárie em Humanismo Selvagem, espetáculo da Bife Seco, de 2023.
Noah Mancini: Como começa a ideia do livro, como ele nasce? Os textos alguns já existiam, outros nasceram no processo de criação?
Amanda Leal: Na verdade eu acho que o Galope é como se fosse… sabe uma décima versão de um projeto, de uma ideia? O livro é o primeiro. Acho que houve momentos em que escrevi outros livros que foram natimortos, vamos dizer assim. O Galope foi tipo um parto. Eu sinto que eu tô lidando com ele, tenho que levar ele pros lugares, parece que eu tô ensinando esse livro a caminhar sozinho. Acho que houve outros livros que não vingaram, que ficaram no meio do caminho, que levaram nãos, não de editoras, de editais, de pareceres machistas inclusive. Então ali já devia ser a quarta tentativa, isso em 2020, 2021, de escrever um livro, de colocar um original no mundo. E aí quando resolvi organizar o Galope, que eu nem sabia que teria esse nome, e o título foi uma das últimas coisas que surgiu, eu vi essa chamada da Editora Libertinagem, e tinha o prazo cravadinho em Janeiro de 2023. Só que em 2022 eu já tinha visto essa chamada e então pensei: “vamos colocar esse livro no mundo, vamos se preparar”. Então comecei a juntar, comecei a olhar para originais passados também, desses outros livros que não existiram. E comecei a fazer esse monstro, essa colcha de retalhos, de poemas de várias épocas. Creio que o primeiro livro é um exercício de compilar várias épocas da vida, de pinçar, de fazer esses exercícios de aproximação e distanciamento de um poema para o outro, escolher que teria capítulos, o que vem antes do outro. Esse trabalho foi pensado para essa chamada, para esse momento. Duas coisas confluíram: ter um prazo para entregar e mergulhar nisso e resolver que queria mostrar poemas antigos também. A maior parte deles é um pouco mais recente, de 2019 para 2022 e Janeiro de 2023. O Galope nasceu de outros quases, de muitos nãos, e de muita insistência, de muita revolta condensada. Acho que o próprio título já evoca um cenário que pode ser explosivo, que pode configurar guerra, dor, perda, sangue e isso conversa com a realidade que a gente viveu nos últimos anos. Tem muita coisa desse período falando de sobrevivência, de morte, de genocidio, desse caos que não é simplesmente um caos, mas é a ordem e o progresso deles, de um poder…
Noah Mancini: Mas ele tem uma coisa meio romântica também, né?
Amanda Leal: Tem também esse outro lado, talvez tenha três coisas que elas podem conversar entre si. O avassalador da paixão do amor e do desamor, da dor relacionada à ausência, à saudade, à perda. Esses poemas políticos, poemas rojões, poemas bomba, que canalizam a revolta em relação ao cenário político do país, e os poemas que falam de gênero, de lugares de de dissidência, de desencaixes, mas também de tentativa de olhar para outras pessoas que não são só eu, mas de vez a diversidade que existe no Brasil, que a gente convive, que a gente vive. E ao mesmo tempo isso também é político porque a gente vê essa perseguição, esse massacre, essa série de violências que continuam acontecendo contra isso que chamam de minoria, porque se juntar essa galera toda não é minoria nenhuma. A gente tem que questionar as palavras, porque já começa a desarticulação das coisas. Minorias? (risos)
Noah Mancini: Eu queria que você falasse sobre o processo de criação da capa, que também é sua, né? É uma ilustração sobre papel?
Amanda Leal: Ali por 2018, 2019, comecei essa pesquisa com sangue menstrual, que foi também uma época que eu estava voltando a escrever. Eu passei um tempo em bloqueio com a escrita – às vezes acho que a gente só tá vivendo outras coisas e perde o hábito. Porque a coisa do hábito e do exercício que é o babado. Escrever como quem escova os dentes todos os dias, como quem come, como algo que é básico, algo que precisa ser feito. Nessa época não tinha essa noção, e fui me ocupar de outras coisas, me expressar de outras formas. Na época que comecei a pintar com o sangue foi a época que voltei a escrever. E acho que aí começou uma coisa que é uma fonte de diversas pesquisas que estou trabalhando desde então. No caso do livro, ah, é literatura. Mas tem minha obra minha ali, e sei que muitos textos foram escritos a partir do corpo, do teatro, da dança, que em momentos da vida pensou essa escrita não só como algo do intelectual, do racional, da mente, mas de uma criação que passa por outros lugares. Quando eu percebi a escrita junto com essa pesquisa visual, plástica, sanguínea, ela estava dando corpo a coisas, a coisas que queria dizer, a ideias, expressões. E se tornaram várias pesquisas. Tenho um trabalho que é “O Monstro”, “O Monstro” é um rastro de performance, que ele foi feito todas as vezes com essas obras em A4, em sulfite em papel, que eu colei uma na outra com fita crepe e eles viravam uma colagem grande, um organismo. Mas ele todo esticado no chão é uma coisa, mas ele passava de coisa reta, no chão, para algo que me acompanhava nessas performances que realizei algumas vezes diretamente no meu corpo. E ia me manipulando, me relacionando com o espaço. Esse “Monstro” era um ajuntamento de imagens com o sangue menstrual. Ou eram palavras, ou eram coisas abstratas, e a palavra sempre estava presente, seja no monstro, seja em projeções que eu usava nessas performances. Tem uma coisa de uma linha que vai desenrolando e vai puxando a outra. Inclusive eu levei um desses monstros para o lançamento do meu livro. E ainda existe muito tabu em relação ao sangue menstrual, então não tenho receio de chamar de monstro. Colocar uma obra de sangue na capa do livro é uma maneira de desdobrar meu corpo e esse trabalho.
Noah Mancini: Tem um jeito que você estrutura o seu texto, seus versos são grandes, e você não dá tantos saltos, não tem muitas estrofes. E isso dá um peso pro texto. Queria que você me contasse um pouco sobre isso…
Amanda Leal: Eu edito muito as coisas que escrevo várias vezes. Sabe quando você não se aguenta, e pensa: “preciso mudar isso?”. Acabo tendo processos diversos, hoje escrevi uma coisa no caderno, veio uma palavra, um começo, um pensamento e brinquei com isso no papel. Essa coisa da visualidade sempre me interessou na palavra, nos suportes. Tanto que eu gosto de brincar com isso no digital e em objetos também. Às vezes eu pego um objeto e registro em foto e em vídeo. E depois o texto vem assim, como um grande fluxo. Outros vem com as quebras um pouco mais definidas, que depois se eu quiser eu mudo e mexo. Alguns vem com querer brincar com ele, de centralizar, de colocar na margem da direita, de dar mais espaços na página para criar outras visualidades. Até acho que o Galope nesse sentido é um pouco mais comportado, no que diz respeito ao lugar da palavra no papel. Tem poemas que já sei que ele vai ser assim, outros eu vou descobrindo, brincando.
Noah Mancini: Queria saber se existem próximos projetos com a escrita e se tem interesse em escrever em outros gêneros literários?
Amanda Leal: Eu sou mais conhecide pela minha atuação no teatro. E acho que aparece na minha escrita esse lugar de um corpo que cria, que é inquieto, que é ansioso também, mas que precisa estar sempre saindo de si, para conseguir achar o caminho de volta pra casa. A forma como escrevo muitas vezes lança um pouco uma flecha na direção da performance, do teatro, da cena, do encontro, de aquilo poder estar no palco. Ainda é um livro de poesia, mas como isso está no corpo? Como a gente entende a voz – que cada pessoa tem uma – como um corpo, e como a voz dá corpo ao texto? Cada leitura de cada pessoa me desperta e me leva para lugares que eu não tinha vislumbrado daquelas palavras. Por muito tempo nem pensei em escrever poesia, mas tive contato com coisas mais contemporâneas, tanto de poesias, quanto de prosa, tanto dramaturgia, coisas que ampliaram a minha percepção do que era ou tinha que ser poesia. E depois abri mão disso.
De gêneros literários estou me interessando em escrever dramaturgia, e estou escrevendo, não sei se isso vai ser uma peça de teatro um dia, mas acho que é uma proposta bem híbrida, bem transdisciplinar, mistura de coisas. Eu vou estar falando do trabalho, do trabalho criativo, do trabalho doméstico, e da minha realidade sendo trabalhadore. Acho que está meio no limiar, não tem personagem direito, creio que experimentei muito, vai ser uma coisa mais contemporânea num lugar de stand-up drama (risos). Porque é rir para não chorar, se for falar da realidade dura. Acho que a poesia sendo o modo de olhar e de se relacionar com o mundo e com as pessoas, ela também é um modo de desautomatizar. É um modo de viver, mesmo quando a gente está se fudendo – e sem romantismo. Botar um livro no mundo hoje é quase uma loucura, mas a gente vê sentido nisso. A gente quer muito, a gente vê muito sentido em realizar, mas é necessário muito trabalho para ele correr o mundo e não ficar na nossa gaveta. É mais uma forma de tentar sobreviver.