Essa semana, não vou falar sobre política. Sinto muito se alguém esperava um texto ácido, com ironias finas sobre comparações esdrúxulas, anistia, listas de assinaturas ou sobre a mais nova polêmica envolvendo Bolsonaro ou o presidente Lula. Mas não. Hoje, não falarei sobre política.
Hoje falarei sobre autismo.
• Clique aqui agora e receba todas as principais notícias do Diário de Curitiba no seu WhatsApp!
Talvez nem todos os leitores saibam, mas além de jornalista, além de cofundador do Diário de Curitiba, além de estar metido até o pescoço nesse projeto de jornalismo independente — que insiste em se manter alternativo, plural e apartidário em uma cidade tão conservadora como a nossa — eu também sou pai.
Sou casado. E tenho um filho que é o amor da minha vida todinha. Chama-se Davi. Tem 11 anos.
Aos 2 anos e 10 meses, ele foi diagnosticado com autismo. Primeiro, disseram que era leve. Nível 1, com aquele eufemismo técnico que tenta suavizar o impacto. Depois, veio a suspeita de nível 2. Mas no fim das contas, o número importa menos do que a realidade: havia ali um novo universo que a minha esposa e eu precisaríamos aprender a habitar.
Começou, então, uma jornada de transformações — na rotina, nos planos, nas expectativas. O filho idealizado deu lugar ao filho real. E o amor se fez mais concreto, mais denso, mais urgente. Com crises, sim. Com desafios. Mas também com afeto e superação.
Teve pandemia no meio disso tudo. Dois anos sem escola, sem terapias presenciais, com aulas online que não serviam para quase nada. As dificuldades aumentaram. Comportamento, aprendizado, fala, sono, tudo virou montanha-russa. E, de vez em quando, um pouco de agressividade. Difícil. Mas seguimos.
Nos últimos anos, graças a um trabalho intenso com terapeutas maravilhosos — e também à maturidade dele — houve melhora. Muita melhora. O comportamento ficou mais flexível, a fala evoluiu, a frustração diminuiu. Ganhamos terreno. Respiramos.
Mas essa última semana não foi das melhores.
Davi entrou numa rigidez forte. Recusava-se a ir para a escola. Não queria ver o uniforme. Chorava, entrava em crise. Faltou. Faltou mesmo, porque não havia condições de levá-lo.
Na quarta-feira, depois da terapia, uma das profissionais que o acompanha perguntou: “Você quer fazer xixi?”. Só isso. Uma pergunta inocente para qualquer um de nós. Mas para ele, foi o gatilho.
A crise veio forte. Choro, grito, um tapa no meu braço. E doeu. Ele é grande para a idade. Eu disse: “Filho, me machucou”. E aí algo inesperado aconteceu. A crise parou. Ele me olhou com preocupação, me abraçou, beijou, pediu desculpa. E fez carinho no meu rosto. O tapa virou afeto. E eu, ali, desmanchado por dentro.
Essas crises me fazem revisitar todas as outras. As da rua. As do ônibus. As de casa. E também me lembram que cada avanço que conquistamos tem um preço. Um esforço. Um cansaço. Uma vitória miúda, mas gigantesca.
Hoje é sábado e ele está bem. Brincando, cantando, me interrompendo a cada cinco minutos para contar alguma coisa.
“Tem carne no dente do leão”, diz ele.
E eu digo, sorrindo: “Tem que passar o fio dental para tirar a carne do dente do leão”.
Ele ri, satisfeito com a solução inventada. E eu, por um instante, penso em quantas famílias não têm nem o fio dental do SUS para resolver o que deveria ser óbvio.
Volto a escrever.
Mas me pego pensando na conversa que ouvi, “sem querer querendo”, de uma conhecida. Ela dizia que seu filho também foi diagnosticado com autismo, mas não tem plano de saúde. Vai entrar na fila do SUS. Vai esperar. Esperar muito. Enquanto meu Davi brinca com metáforas, outras crianças aguardam na fila por um atendimento que o acesso a ele deveria ser tão simples quanto escovar os dentes.
E aí, sim, mesmo sem querer, eu volto à política.
Porque isso — isso sim — é política. Política pública. Política de saúde. Política de inclusão.
A verdade é que milhares de famílias, como a dela, estão na fila. Esperando diagnóstico, esperando terapia, esperando apoio. Mesmo em Curitiba, que tem estrutura melhor que muitas cidades do país, o gargalo é enorme. Faltam profissionais, faltam políticas efetivas, falta vontade de fazer a inclusão de fato — não apenas a integração simbólica, como a que é feita nas escolas.
Escola que acolhe é escola com preparo. Com mediador. Com empatia. Com estrutura.
É revoltante ver que ainda confundem inclusão com caridade. Não é favor. É direito. E não dá mais para esperar. Porque cada dia sem atendimento é um dia perdido para essas crianças. E elas não têm tempo a perder.
Disse que não falaria de política. Mas falei. Porque, no fim das contas, viver o autismo de perto é um ato político. Amar um filho autista é resistir à negligência do Estado, à ignorância social e à invisibilidade institucional.
E enquanto ele estiver por aqui, brincando, cantando, inventando histórias sobre leões e seus dentes — eu estarei também. Pausando o texto, a rotina e o mundo, quantas vezes forem necessárias. Porque ele, como todas as crianças na fila do SUS, merece mais do que metáforas. Merece um país que transforme o “dente do leão” em diagnóstico precoce, terapia no tempo certo, e o fio dental em direito garantido.