Há uma cena no segundo episódio da nova temporada de The Last of Us que não me sai da cabeça.
(Alerta de spoiler leve para quem ainda não viu o episódio.)
E não, não é a cena da morte do Joel (Pedro Pascal) . É uma outra, talvez menos comentada, mas brutal em sua alegoria: os infectados despertam numa montanha e avançam, em massa, rumo à cidade de Jackson. A cidade onde Ellie (Bella Ramsey) e Joel tentam sobreviver. Um refúgio que, de repente, está prestes a ser invadido. O exército se posiciona. A população se esconde. E o terror se instala.
Aqueles corpos desfigurados que correm sem consciência, dominados por um fungo — o tal do Cordyceps — são, claro, uma metáfora. Os filmes e séries de zumbi sempre foram sobre isso. Alegorias do que há de pior em nós. Do descontrole, da irracionalidade, da violência que mora debaixo da superfície.
Mas a cena me fez pensar: será mesmo que precisamos de um vírus, de um fungo, de uma mutação biológica para perdermos a humanidade? Ou será que já estamos cuidando bem dessa tarefa por conta própria?
Veja os rios. Águas doces, limpas, potáveis, destruídas por garimpo ilegal em nome do ouro. Um metal. Um capricho. Um símbolo de poder que ainda compramos à custa da água que precisaremos para viver. Avizinha-se uma crise hídrica global — e mesmo assim, seguimos envenenando o planeta.
Veja os oceanos, devastados por lixo e plataformas de petróleo, enquanto alternativas energéticas mais limpas batem à porta. Veja a terra, encharcada de agrotóxicos. Veja o ar, cortado por fumaça de queimadas e poluição. O ser humano é o único animal que destrói o próprio ninho com orgulho.
Hannah Arendt, ao refletir sobre o mal, escreveu que o verdadeiro perigo está na banalidade. No automatismo com que nos acostumamos à destruição. “O mal não precisa ser demoníaco. Pode ser medíocre, burocrático, repetitivo.” E talvez seja exatamente isso que nos define hoje: uma rotina de autodestruição que virou hábito.
Veja o que fazemos uns com os outros. Guerras por ideologias, fronteiras, religiões. Crianças morrendo na Ucrânia. Cidades desaparecendo na Faixa de Gaza. Velhos, mulheres, bebês, estilhaçados por bombas que não sabem o nome de quem matam. Terroristas atacam civis inocentes. Estados respondem com força desproporcional. E no meio disso tudo, só há uma certeza: ninguém está vencendo.
E nem preciso ir tão longe. Há quem sinta nojo de pobre. A aporofobia — o desprezo pelos mais vulneráveis — cresce em silêncio nos comentários das redes, nas piadas de rodinha, nos olhares desviados nos sinais de trânsito.
Somos bons? Somos mesmo diferentes dos infectados da série? Ou a nossa infecção é apenas menos visível?
Porque, ao contrário dos zumbis de The Last of Us, nossa violência vem com CPF. Vem com colarinho, com terno, com likes. A gente destrói com discurso, com voto, com omissão.
É verdade: há exceções. Há pessoas incríveis, iniciativas de paz, defensores do meio ambiente, comunidades inteiras que resistem à lógica da destruição. Gente que abraça, que cuida, que planta em vez de queimar. Mas, mesmo com essas luzes acesas no meio da escuridão, fica a sensação incômoda de que o mal tem andado mais rápido. E, pior, tem sido mais ouvido.
O mais assustador da série não é o fungo. É o espelho. O susto não está no monstro, mas no reconhecimento. No incômodo de perceber que, em muitos sentidos, nós já deixamos de ser humanos muito antes do colapso.
A humanidade não precisa de um apocalipse. Ela já começou o próprio fim faz tempo. E o pior: ninguém corre. Ninguém se esconde. Ninguém se protege.
Todos seguem andando, como se nada estivesse acontecendo.
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