Em 2025, a Câmara Municipal de Curitiba decidiu que precisava de mais uma data no calendário. Não bastavam as pautas urgentes de saúde, moradia, educação, crise climática, ou mesmo a fila por atendimento especializado para crianças com autismo. O que faltava, mesmo, era um Dia dos CACs — Colecionadores, Atiradores e Caçadores. Um tributo simbólico à cultura armamentista, à caça esportiva (ou recreativa?), à legítima defesa, à liberdade de atirar. De preferência, com calibre 38. Afinal, 3 de agosto, o oitavo mês, virou uma “homenagem simbólica” ao número que dispara no peito e estoura no chão.
É claro que tudo foi defendido com aquele verniz da respeitabilidade: o esporte olímpico, o controle legal das armas, a caça ao javali, a proteção da lavoura. Mas o verniz descascou feio quando o vereador Éder Borges (PL), autor do projeto, subiu à tribuna e decidiu usar um exemplo histórico… digamos, “infeliz”.
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Disse ele que a Ku Klux Klan, aquela organização terrorista supremacista branca, foi criada como reação ao “empoderamento negro”.
Porque os negros, segundo ele, estavam “se armando”.
A fala foi um atropelo histórico, ético e político. Se a intenção era argumentar a favor da população armada como forma de defesa, o vereador escolheu mal sua metáfora. A KKK não nasceu para se defender. Ela nasceu para oprimir. Para intimidar. Para linchar. A Klan não é símbolo de resistência. É símbolo de terror. E evocar esse nome em plenário, com o microfone ligado e o calendário à disposição, beira o revisionismo cínico.
Mais tarde, tentou recuar. Disse que foi mal interpretado. Disse que a Klan era grotesca. Mas já era tarde. A fala foi feita. E não há bala que volte ao cano depois do disparo.
Mas o problema vai além da fala isolada. Está no símbolo que se constrói em torno dela. Um projeto que coloca no mesmo balaio atiradores olímpicos e caçadores recreativos. Que transforma um calibre de arma — o 38 — em símbolo de identidade cultural. Que tenta vender armamento como instrumento de paz. E que responde a qualquer crítica com fala heroica ou teorias de perseguição ideológica.
Durante o debate, vereadoras como Laís Leão (PDT), Andressa Bianchessi (União), Camila Gonda (PSB) e Giorgia Prates – Mandata Preta (PT) fizeram um contraponto lúcido e corajoso. Denunciaram a tentativa de transformar armas em símbolo cultural. Questionaram a lógica da violência institucionalizada. Mostraram dados, falaram em vida, em meio ambiente, em responsabilidade. Foram interrompidas, ironizadas, mas permaneceram firmes.
Disseram o que precisava ser dito: a apologia à arma como instrumento de cidadania é uma ilusão perigosa.
Ela não protege. Ela multiplica riscos.
E, quando ganha respaldo oficial — com direito a data comemorativa —, vira tragédia com carimbo.
É verdade que há CACs sérios. Que existem atletas do tiro, profissionais do campo, agentes da lei com preparo e propósito. Há exceções. Sempre há. Mas o problema é quando a exceção vira desculpa para o retrocesso — e quando o plenário vira palanque para distorções históricas.
Curitiba precisa de paz, não de mais armas. Precisa de educação de qualidade, não de discursos inflamados. Precisa de mais verde nas praças, não de calibres em calendário. Precisa de medalhas conquistadas com livros e ciência, não com pólvora e simbologia beligerante.
O que aconteceu nesta terça-feira (22) foi mais do que uma votação em primeiro turno. Foi um ensaio sobre como se tenta naturalizar o inaceitável. E quando alguém evoca a Ku Klux Klan como referência — mesmo que “negativamente” — algo está muito errado na munição do discurso.
Não se trata de esquerda ou direita. Trata-se de decência.
Porque quem brinca com pólvora histórica… uma hora explode a própria legitimidade.