Há uma coisa curiosa no Brasil de hoje: há gente que fala como se estivesse revelando um segredo histórico, quando, na verdade, está apenas repetindo uma distorção com roupagem de erudição.
O vereador Éder Borges (PL) voltou a se pronunciar. Após a repercussão da sua fala sobre a Ku Klux Klan — aquela, sim, a organização supremacista branca, terrorista e responsável por linchamentos, queimar cruzes e perseguir negros — resolveu gravar um vídeo. Um “esclarecimento”.
Nele, acusa a esquerda de “delírios” e diz que foi mal interpretado. Grita que a Klan não é exemplo de nada, mas, veja bem, “foi criada para desarmar negros libertos”. Para reforçar seu ponto, cita um livro: Gunfight: The Battle Over the Right to Bear Arms in America, do professor de direito constitucional Adam Winkler, da UCLA. Um autor, segundo ele, “desarmamentista”.
Antes de tudo: sim, o livro existe. Sim, é sério. E sim, ele trata da relação entre o direito ao porte de armas e questões raciais nos EUA, incluindo o fato de que, após a Guerra Civil, houve uma tentativa de restringir o acesso de ex-escravizados a armas como forma de manutenção do poder branco.
Mas aqui mora o problema: o livro não justifica nem respalda a romantização de grupos como a Ku Klux Klan. Muito pelo contrário. Winkler deixa claro que a KKK não defendia o direito ao armamento como expressão de liberdade — ela defendia o armamento para manter a supremacia branca, para silenciar os negros, para manter o terror racial.
Ou seja, a Klan não surgiu em resposta a negros armados. Ela surgiu para impedir que negros tivessem qualquer poder — inclusive o poder de se defender. A narrativa de que a Klan apenas reagia ao “empoderamento negro” não é só falsa: é perigosa. Ela inverte o agressor e a vítima. Romantiza o opressor. A história não admite esse tipo de manipulação. Não se trata de uma nuance mal compreendida. Trata-se do núcleo da questão. Distorcer isso, ainda mais como argumento político, é desonesto. Ou ignorante. Ou as duas coisas ao mesmo tempo.
Quando um parlamentar ocupa seu tempo tentando “limpar” um exemplo grotesco que ele mesmo escolheu — em vez de recuar, refletir e pedir desculpas —, ele escancara que o problema não é o exemplo. É o projeto.
O projeto não é a proteção dos negros. O projeto é vender a ideia de que mais armas significam mais liberdade. O projeto é colar o armamento civil à ideia de resistência, de povo forte, de justiça pelas próprias mãos — mesmo quando a história mostra, com sangue e dor, que os mais armados quase sempre foram os que subjugaram, não os que se libertaram.
Enquanto isso, em Curitiba, mães peregrinam entre postos e hospitais esperando por um laudo de autismo que nunca chega. A rede pública carece de terapeutas, os centros de atendimento vivem lotados, e há crianças que perdem meses preciosos sem qualquer intervenção. Escolas funcionam com salas lotadas e falta de mediadores. Mães solo desistem de trabalhar por não conseguirem vaga em creche. Pacientes aguardam na fila por diagnóstico oncológico enquanto a emergência climática e as enchen avançam sobre a cidade. Mas, diante de tudo isso, a prioridade de um vereador é votar um Dia dos CACs — e gravar vídeo para defender a Ku Klux Klan. Isso não é só desvio de foco. É inversão de valores.
Simone Weil, filósofa e mística francesa, escreveu certa vez que “a atenção é a forma mais rara e pura de generosidade”. Pois é. Se há algo que está faltando na política curitibana não é só bom senso — é atenção. Atenção ao que importa. Atenção ao outro. Atenção à cidade real, fora das câmeras e dos perfis verificados.
Mas quando o vereador prefere gastar seu tempo e energia numa cruzada simbólica por armas, enquanto transforma um livro sério em escudo retórico para proteger uma fala infeliz, é porque há algo mais grave em jogo. Não é ignorância — é estratégia. Estratégia de desgaste, de polarização, de guerra cultural.
E o que deveria ser um “parlamento” municipal vira um ringue de metáforas mal lidas, de indignações seletivas e de debates que não melhoram a vida de ninguém.
Curitiba não precisa de uma aula de história da Klan. Precisa de remédio e médicos na UPA. De asfalto decente (também) na periferia. De política pública para crianças neurodivergentes. E, quem sabe, de vereadores que consigam subir à tribuna para falar de justiça — sem tropeçar na própria munição ideológica.
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