Recebi no direct um vídeo do deputado federal Nikolas Ferreira (PL). Fundo preto, luz focada no rosto, fala pausada, tom manso. Um tipo de estética que já virou assinatura — meio pastor, meio influenciador, meio vilão de série que quer parecer mocinho. O vídeo, como sempre, era um sucesso: milhões de visualizações, indignação performática, roteiro certeiro.
Dessa vez, o tema era a fraude bilionária no INSS. Um escândalo real, que merece investigação séria. Mas Nikolas, como sempre, mistura fatos e versões. Aponta culpados seletivos. Cita Bolsonaro como o homem que tentou impedir o roubo. E Lula como o vilão que “voltou à cena do crime”.
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Não menciona que a MP usada por Bolsonaro para coibir fraudes foi derrubada pelo Congresso — e não exclusivamente pelo “governo Lula”. Também não diz que a investigação da CGU, que revelou o rombo, foi feita na atual gestão. E muito menos que o valor de R$ 90 bilhões citado no vídeo se refere ao total de empréstimos consignados, não à fraude em si, que, segundo a PF, gira em torno de R$ 6 bilhões.
Mas, claro, num país onde o algoritmo recompensa o simplismo indignado, quem precisa de precisão?
O mesmo Nikolas que chora pelos idosos é o que votou contra a isenção de impostos na cesta básica. O mesmo que aponta o dedo agora é o que defendeu a anistia para os golpistas de 8 de janeiro. E o mesmo partido que diz lutar pelos pobres é o que isentou jet skis de imposto — mas não o arroz e o feijão.
A hipocrisia está no palco, mas também na plateia.
É fácil se indignar com o roubo dos aposentados. Difícil é admitir que a cultura da vantagem está impregnada no tecido social. A fila furada no posto de saúde. A carteirada na blitz. O filho que “conseguiu uma ajudinha” para entrar na escola pública que “não tinha mais vaga”. A vaga de idoso ocupada por quem “só vai rapidinho”. O fiscal amigo que “resolveu” o problema do alvará.
É fácil compartilhar o vídeo de fundo preto. Difícil é reconhecer o espelho que ele reflete.
A política é reflexo da sociedade. Se temos líderes que distorcem, é porque há público que consome. Se temos discursos hipócritas, é porque há ouvidos que preferem narrativas em vez de nuances. E se temos escândalos repetidos, é porque a estrutura permanece inalterada — reforçada, inclusive, pela omissão seletiva.
O filósofo francês Michel de Montaigne dizia que “cada homem carrega a forma inteira da condição humana”. Em outras palavras: antes de apontar para o outro, é preciso enxergar o que há de comum. E há muita hipocrisia comum por aí — na esquerda e na direita, no político e no eleitor, no vídeo e no espelho.
Claro que o escândalo do INSS deve ser investigado. Claro que quem fraudou deve ser punido. Mas talvez, além do CPF dos fraudadores, a gente precise investigar os valores que sustentam um país onde a “esperteza” virou virtude.
Porque, enquanto seguimos fingindo surpresa com o óbvio e exigindo ética só do outro, o Brasil continua assim: indignado na timeline e conivente na prática.