“Parado! Aqui é o rato! Mão pra cima!”
É uma frase inventada, mas poderia ser real. Porque nesse Paraná que se orgulha de colégios cívico-militares, que se fantasia de disciplina e justiça, há um grito que ninguém ouve. Ou pior: um grito que muitos preferem calar.
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Essa semana, o deputado estadual Renato Freitas (PT) falou na Assembleia Legislativa sobre a morte de Wellington dos Santos, um homem negro, que teria sido executado com sete tiros em Colombo. Não foi o primeiro caso. E nem o segundo. Em sua fala, Renato citou outros nomes, outras mortes, outros absurdos — como o do jovem Ian Cordeiro, de 21 anos, morto no mês passado, deixando para trás uma esposa grávida. Ele denunciou uma polícia agressiva, uma política de segurança letal, uma estrutura que silencia os corpos antes que eles possam ser ouvidos.
E chamou o governador Ratinho Júnior de assassino e corrupto. Foi interrompido. Foi advertido. Foi criticado. A indignação de muitos colegas não era com a denúncia. Era com o tom.
Mas quantas vezes é preciso repetir que a forma só escandaliza quando a estrutura é aceita?
Renato poderia ter falado mais baixo, com mais calma, com outro vocabulário. Mas talvez ninguém escutasse. Porque o que realmente incomoda não é o volume — é o espelho. E, nesse espelho, não é a ofensa que se vê, mas o sangue.
Em 2024, segundo o Ministério Público do Paraná, foram 433 confrontos com forças de segurança. Desses, 412 terminaram em morte. Isso mesmo: 412 mortos. Um aumento de 18% em relação ao ano anterior. A média é de mais de um morto por dia. E, ainda assim, o problema segue sendo quem levanta a voz, e não quem levanta a mira.
Enquanto isso, o governador defende colégios cívico-militares. Fala que a disciplina militar é o melhor caminho para educar adolescentes. Fala, inclusive, que se o Paraná pudesse, aprovaria uma legislação penal mais dura. Tudo isso sob um verniz de eficiência, progresso e ordem. Mas por trás do discurso, mora o medo. E por trás do medo, cresce a lógica do justiçamento.
Nas escolas, há dois diretores: o pedagógico e o disciplinar — este último, um militar. A ideia é clara: a autoridade de farda seria mais eficaz do que o diálogo de um educador. A disciplina pela hierarquia. A obediência pela imposição.
Mas quem vigia os vigilantes?
Quantas denúncias são arquivadas? Quantos tapas na cara de manifestantes ficaram impunes? Quantos mortos entram para a estatística antes mesmo de serem reconhecidos como vítimas?
E mais: quando o governador, de acordo com a fala de Renato Freitas, nomeia como secretário de Segurança um coronel cujo irmão está envolvido em suspeitas de facilitação de “suicídio” dentro do sistema prisional, a palavra “corrupção” realmente soa exagerada?
A resposta não precisa ser gritada. Ela já está sendo sussurrada pelos caixões.
O filósofo camaronês Achille Mbembe diz que o necropoder é a capacidade de decidir quem vive e quem morre. E esse poder, quando naturalizado, se torna paisagem. A bala vira rotina. O sangue vira ruído. E a denúncia vira “exagero”.
Renato Freitas gritou porque alguém precisava gritar. O incômodo não é com o tom. É com o alvo da denúncia. Porque o que se tenta silenciar é a pergunta central:
Quem afia a faca da violência pode lavar as mãos depois?
Enquanto seguimos discutindo se foi falta de decoro, mais corpos caem. Enquanto nos preocupamos com a palavra “assassino”, ignoramos os relatórios que mostram o dedo no gatilho. Enquanto a Assembleia se choca com o tom, o povo se choca com a morte.
Este texto não é para defender Renato Freitas. Ele fala por si. É para lembrar que o verdadeiro escândalo não é chamar alguém de cúmplice.
É ser cúmplice — e achar isso normal.