Hoje de manhã, Aline me parou de novo.
Estava encolhida na calçada, quase invisível sob uma coberta fina. Eu voltava do mercado quando ouvi: “Moço, compra uma coxinha pra mim?”. A voz era baixa, mas direta. Ela sorria, como quem tenta suavizar o pedido com simpatia. Estava magra. Mais do que das últimas vezes. Os dedos roxos. As mãos trêmulas.
Falei que voltava já. Comprei a coxinha, e um copo de café com leite. Quando voltei, ela abriu um sorriso miúdo e agradeceu. “Essa noite doeu, viu?”, disse, soprando as mãos. “Nem parece Curitiba… parece Polo Norte.” Riu sozinha, com os dentes poucos que lhe restam.
Curitiba registrou 6,5 °C na manhã desta quinta-feira (29). Perguntei se tinha dormido em algum abrigo. Negou com a cabeça. “Não gosto. Muita regra. Muita gente. E tem que dividir tudo. Até o silêncio.” Depois completou: “E ninguém lá me conhece. Aqui na rua pelo menos sei quem é quem.”
Fiquei com isso na cabeça. Com essa frase. “Até o silêncio tem que dividir.” E com aquele corpo frágil tentando driblar o vento como quem luta contra um soco que vem de todos os lados.
Aline me “persegue” faz tempo.
Conheci ela meses atrás. Estava grávida, barriga grande, e pediu ajuda. Disse que o pai da criança era casado, que não queria nada dele, que pretendia entregar o bebê para adoção e voltar para Minas. Era de Patos de Minas. Falava isso tudo com um jeito prático, quase frio. Mas não era frieza. Era defesa.
Lembro que naquele dia eu disse que ia pegar um dinheiro e voltava. Ela ficou esperando no portão. Quando entreguei, sorriu. E perguntou, como quem oferece bala: “Não quer transar comigo não, moço?” Eu travei. Ela riu. “Não custa tentar”, disse. E seguimos conversando, eu constrangido, ela como se aquilo fosse apenas mais uma frase no meio da rua.
Vi Aline várias vezes desde então. Magra. Ferida. Fumando qualquer coisa. Às vezes rindo. Às vezes chorando. Às vezes só calada. Uma vez pediu dinheiro para antibiótico. Noutra, para a coxinha de sempre. Num dia, contou que dormia atrás de um prédio onde “não passava vento”. Outra vez, disse que tinha voltado pro programa. “A vida não deixa sair, moço.”
E eu, do lado de cá, sem saber o que fazer com tudo isso. Sem saber onde termina o cuidado e começa a impotência.
Quantas Alines passam por nós todos os dias, e a gente já nem vê?
Segundo a Prefeitura de Curitiba, há hoje cerca de 4 mil pessoas em situação de rua. Já entidades como a Pastoral do Povo de Rua estimam que esse número se aproxima dos 7 mil. A cidade conta com cerca de 1.800 vagas de acolhimento — insuficientes para abrigar nem metade dessas pessoas nas noites mais geladas.
E mesmo quando há vagas, em torno de 40% das pessoas abordadas recusam ir para os abrigos. Pelos mesmos motivos que Aline: medo, regras duras, convivência forçada, vergonha, traumas. A rua fere, mas também oferece um tipo de autonomia que o sistema ainda não sabe acolher.
Nos abrigos, faltam escuta, faltam vínculos. Faltam espaços que tratem a dor como parte da jornada — não como empecilho.
Mas o problema não está só nos abrigos. Está em nós. Na frieza com que passamos ao lado de um corpo coberto por plástico, e não paramos. No jeito como naturalizamos o abandono. No olhar que já não se incomoda mais.
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, dizia que “a pobreza extrema é tratada como resíduo humano”. E é isso que Curitiba tem feito. Escondido o resíduo. Empurrado para longe dos centros. Limpado a estética da cidade com vassoura ideológica. Como se quem mora na rua fosse sujeira — e não vida interrompida.
Mas Aline não é estatística. É gente. Tem nome. Tem história. Tem frio.
Hoje, ela sorriu com a coxinha nas mãos. Disse que ia tentar dormir num canto mais quentinho hoje à noite. Disse “Deus te abençoe” antes de ir. E sumiu na calçada. Como quem já aprendeu a desaparecer sem deixar traço.
Mas eu não consegui esquecer. Nem o riso tímido. Nem a frase sobre o silêncio. Nem o fato de que, mesmo em uma das cidades mais ricas do Brasil, a sobrevivência ainda depende de coxinha, sorte e alguma fé.
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