O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, nesta terça-feira (3), aquilo que muitos líderes do mundo evitam dizer: que o que está acontecendo na Faixa de Gaza não é uma guerra, é um genocídio. E disse mais — que os defensores do governo de Israel precisam “parar com o vitimismo” e encarar os fatos: mulheres e crianças estão sendo mortas, civis estão sendo deixados sem comida, e a resposta de Israel a um ataque terrorista virou uma punição coletiva contra o povo palestino.
Foi uma fala forte. Corajosa. Dolorosa. E correta.
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Correta porque nomeia o que muitos têm medo de nomear. Corajosa porque assume o risco político de desafiar aliados históricos do Ocidente. E dolorosa porque, ao tocar na ferida, mostra que ainda há líderes dispostos a falar da dor que o mundo tenta ignorar.
Mas Lula também é uma figura complexa. Como escrevi em outro texto — A retórica de Moscou e o silêncio em Kiev —, o mesmo presidente que denuncia a violência em Gaza é o que se cala diante da repressão em Cuba, que chama de “narrativa” as prisões políticas na Venezuela, e que abraça líderes autoritários com afeto protocolar e discursos laudatórios. O mesmo que defende o povo palestino, mas hesita em reconhecer as violações cometidas por seus aliados estratégicos.
Esse é o dilema de Lula: um líder popular, defensor dos pobres e das causas sociais, mas também um negociador geopolítico que prefere equilibrar pratos do que comprar brigas fora da conveniência diplomática.
A fala sobre Gaza é humana. É ética. Mas, para ser completa, precisa de coerência. O horror de Gaza é inaceitável. Mas o de Moscou também. O de Teerã também. O de Pequim também.
A política internacional, claro, não é feita de pureza. É feita de interesses, alianças e pragmatismo. Mas é justamente por isso que o discurso importa. Porque ele sinaliza onde estão as linhas vermelhas. E quando a linha vermelha muda de lugar conforme o aliado, o que se rompe não é só a coerência: é a credibilidade moral.
O filósofo Emmanuel Lévinas dizia que “o rosto do outro me obriga”. A ética, para ele, não nasce da teoria, mas do encontro com o outro — do olhar que pede cuidado, do sofrimento que exige resposta. Lula, ao falar das crianças mortas em Gaza, está respondendo a esse chamado. Está se deixando afetar. Está enxergando o rosto do outro.
Mas a ética do rosto não escolhe rostos. Não separa os mortos por bandeira. Se a dor palestina o comove — e deve comover —, a dor dos ucranianos, dos opositores presos em Caracas, dos uigures na China, dos jornalistas perseguidos em Teerã e em Moscou, também deveria.
Não se trata de negar a importância da fala sobre Gaza. Ao contrário: é uma fala necessária, urgente, que rompe o silêncio cúmplice de parte da diplomacia mundial. Mas se trata de lembrar que a moral, para ser inteira, não pode ser seletiva.
Lula, com todas as suas contradições, continua sendo um dos poucos líderes globais capazes de provocar esse tipo de debate. E talvez seja isso que o torne tão desconfortável para alguns — e tão necessário para outros.
Porque, no fim das contas, não é sobre defender Israel ou Palestina. Não é sobre ser de direita ou de esquerda. É sobre lembrar que há crianças morrendo. E que há adultos no poder que escolhem — ou não — ver.