Foi uma propaganda da Oslo Pride, da Noruega, que me travou o pensamento esta semana. Um comercial singelo, desses que você quase passa batido entre uma notificação e outra, mas que te amarra no final com um nó onde antes havia só distração.
Cena 1: um jovem gay entra no metrô. Senta. Um homem grande, careca, de cara fechada, senta em frente. O rapaz se encolhe, em alerta. Mas então o homem atende o celular, e no pulso dele, uma pulseira de arco-íris. A tensão some. O jovem sorri. Silêncio quebrado pelo acolhimento simbólico.
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Cena 2: uma mulher lésbica — ou ao menos não performando o que esperam de uma mulher — entra numa entrevista de emprego, insegura, apreensiva. O entrevistador abre o paletó: um cordão arco-íris. Ela respira. A tensão se dissipa. Outra vez, o símbolo como código secreto de empatia.
Cena 3: um casal de mulheres no banco de trás de um táxi. Soltam as mãos quando o motorista as encara pelo retrovisor. Mas veem, no canto, um adesivo de apoio à comunidade LGBTQIA+. E voltam a entrelaçar os dedos. Mais uma vez, o símbolo como senha para o respeito.
A propaganda termina. E a pergunta fica: por que é preciso carregar um símbolo no corpo para que o outro nos reconheça como digno?
Por que, num mundo tão saturado de informação, ainda dependemos de um selo, uma pulseira, uma bandeira ou um cordão para que a empatia se ative? O que fizemos com a compaixão instintiva? Onde enfiamos o respeito básico que deveríamos oferecer sem precisar de legenda?
O cordão de arco-íris. O cordão de girassol. O crachá do autista. O símbolo da surdez. A pulseira da fibromialgia. Tudo isso são formas legítimas de identificação. Mas também são sintomas de uma sociedade que só enxerga o que é anunciado.
É bonito que existam símbolos de acolhimento. É necessário, até. Mas é trágico que tenhamos nos tornado tão cegos à dor do outro que seja preciso um manual de instruções para que a gentileza aconteça.
Como se a empatia tivesse virado produto de prateleira: só funciona com código de barras visível.
O filósofo Emmanuel Levinas dizia que a ética começa no rosto do outro. Na vulnerabilidade estampada em sua expressão. Não no crachá, no símbolo ou na categoria. No rosto. Simples assim.
Mas parece que perdemos essa habilidade. Em vez de enxergar o outro como rosto, vemos rótulo. Em vez de reconhecer a dor, pedimos laudo. Em vez de nos incomodarmos com o sofrimento, exigimos que ele seja “legível”.
É como se só houvesse espaço para a empatia quando ela estiver claramente identificada. Como se o humano tivesse virado exceção, e não premissa.
O Evangelho de Mateus (25:35–40) tem aquela cena conhecida: “Estive com fome, e me destes de comer; estive nu, e me vestistes.” E os justos perguntam: “Senhor, quando te vimos com fome e te demos de comer?” E ele responde: “Sempre que fizestes isso a um dos meus pequeninos irmãos, foi a mim que o fizestes.”
Não diz ali: “quando viste meu crachá”. Não diz: “quando reconheceste meu símbolo”. Diz apenas: quando viste. E agiu.
Essa deveria ser a base. Ver. E agir. Mas estamos presos no contrário: só agimos quando há aviso. Quando há selo. Quando há prova.
Talvez estejamos colecionando símbolos para compensar o que já deveríamos ter aprendido sem eles: que toda existência merece respeito. Que toda diferença carrega dignidade. Que toda vulnerabilidade é um convite à compaixão — não ao medo, ao deboche ou ao julgamento.
A propaganda termina com rostos aliviados. Mas fica a pergunta: o que acontece quando o cordão falta? Quando o selo não está colado? Quando o outro não performa nenhum sinal visível daquilo que o mundo decidiu que é “merecedor” de empatia?
Talvez seja hora de reaprender o básico. Ver o outro. Não o crachá. Não o símbolo. O outro. Com sua história, sua dor, seu jeito de andar, de vestir, de amar, de existir.
Porque empatia que depende de legenda… ainda não é empatia.