Dizem que o humor é o último bastião da liberdade. Que o palco é visto como terra sagrada onde quase tudo se permite — do escracho ao escândalo. Que o comediante é o bobo da corte moderno, aquele que debocha do rei e do povo com a mesma ousadia. Mas e quando o riso não alivia, e sim fere? Quando a gargalhada não liberta, mas reduz o outro à caricatura?
Leo Lins foi condenado a oito anos de prisão por fazer piadas — mas não qualquer piada. Foram piadas que ridicularizam negros, judeus, indígenas, pessoas com deficiência, evangélicos, soropositivos, nordestinos. A defesa grita “censura”, levanta a bandeira da liberdade artística, lembra que é só humor. Mas o tribunal disse não. E o Brasil inteiro parece ter se dividido entre risos e repulsa.
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Conversei informalmente com meu amigo Donizete Furlan, mestre em Direito e especialista em Direitos Humanos. A fala dele foi tão clara quanto firme: “Nenhum direito é absoluto. Quando você adentra o núcleo essencial do direito alheio — religião, expressão, etnia — você corre o risco de cometer um ilícito penal. Humor tem limites, assim como a liberdade de expressão.”
Ele é direto. Incisivo. E não contorna arestas.
Disse que Leo Lins usou o riso como arma. Que construiu sua popularidade performando preconceito. Que quem ri com ele, ri de alguém — e não com alguém. E que, se não houvesse consequência, seria o caos: qualquer um poderia se esconder atrás do microfone para perpetuar estigmas, repetir violências, reembalar discursos que já deveriam estar enterrados.
E sim, ele disse isso. Piadas que parecem resgatadas de um porão — não de um palco. Que não satirizam o poder, mas humilham o vulnerável. Não cutucam o absurdo do mundo, mas tripudiam sobre os corpos que já carregam o peso da exclusão. Piadas que não são libertárias — são só cruéis.
Também ouvi vozes contrárias. Vozes que levantam a bandeira do receio. Que perguntam: se isso é crime, o que mais poderá ser? Quem definirá o que ofende? Qual o risco de transformar toda fala ácida em infração penal? E, mais importante: se combater preconceito exige convencimento, por que o caminho escolhido foi o da punição?
São perguntas legítimas. A liberdade de expressão é mesmo o oxigênio da democracia. Sem ela, o poder sufoca o pensamento. Mas também é verdade que, em nome dela, se pode ferir — não só ideias, mas pessoas.
A conversa com Donizete me lembrou uma máxima que vale repetir: “discurso de ódio gera mais discurso de ódio”. A justiça não pode ser cúmplice disso. Um palco pode ser abrigo — ou armadilha.
O filósofo Karl Popper, ao falar sobre o paradoxo da tolerância, alertava: “Se estendermos tolerância ilimitada aos intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, os tolerantes serão destruídos, e a tolerância com eles.”
A condenação de Leo Lins não é um ataque ao humor. É um chamado à responsabilidade. Não é sobre “não poder mais brincar com nada”. É sobre o que deixamos de chamar de brincadeira quando já passou do limite.
E há um ponto essencial: a justiça não condenou Leo Lins por um ato isolado, num clube fechado, diante de meia dúzia de adultos. A condenação se deu porque o próprio artista gravou, editou e divulgou amplamente seu show — multiplicando a ofensa para milhões. Transformou piadas violentas em produto. E lucrou com isso.
Se o stand-up é arte, então ele é cultura. E toda cultura carrega valores. E toda sociedade precisa decidir que valores quer reforçar.
No fim, talvez a discussão nem seja sobre Leo Lins. Talvez seja sobre nós. Sobre a linha tênue entre liberdade e crueldade. Sobre o tipo de riso que queremos ecoando no nosso tempo. E sobre quem ri com a piada — e quem sangra com ela.