Meu amigo Alex sempre foi bom de papo. E bom de bola. Jogava fácil, pensava rápido, tinha um riso afiado. Crescemos juntos. Divergimos, reencontramos, voltamos a conversar como quem volta a um velho campinho: entre farpas, memória e uma certa ternura. Esses dias, me mandou um vídeo do deputado estadual Guto Zacarias (União Brasil-SP) comparando falas do presidente Lula com as piadas de Léo Lins.
“O Lula podia ser preso também!”, dizia o vídeo. Cinco frases toscas, algumas reais, outras distorcidas — e a conclusão performática: se for pra prender humorista, que se prenda o presidente.
Alex concordava. “Qual a diferença?”, perguntou. “Se o Lula pode falar besteira, por que o Leo Lins não pode fazer piada?”
Respondi com paciência. Falei do dolo comunicativo. Da diferença entre escorregão de palanque e discurso sistemático que transforma minorias em alvo. Falei do que já escrevi aqui, no texto O riso que sangra. Falei que ninguém está acima da crítica — nem Lula, nem Léo. Mas que comparar os dois, juridicamente, é como igualar espirro e ataque químico. Um é grosseria. O outro é violência simbólica.
Alex retrucou com tudo ao mesmo tempo: o irmão do Lula, o INSS, a esquerda que “viaja na paçoca”. Misturou gestão, ironia, ressentimento e indignação, como quem mistura suco de laranja com cimento.
E foi aí que percebi: não é só uma divergência. É uma rachadura. Um abismo que corta o país não só em dois lados, mas em dois modos de pensar. Um país que já não discute ideia — discute espantalhos. Que já não analisa contexto — repete corte de TikTok.
Há uma espécie de fadiga cognitiva que tomou conta do debate público. Gente que ouve uma palavra e já arma trincheira. Gente que responde uma crítica com “mas e o seu lado?”. Gente que acredita que “incoerência alheia” é salvo-conduto para qualquer absurdo.
Léo Lins foi condenado não por uma piada solta, mas por sistematizar um tipo de humor que desumaniza. Lula, como tantos políticos, fala muita besteira — e deve ser cobrado por isso. Mas não se pode colocar tudo no mesmo saco só porque dá uma sensação de justiça de almanaque.
Esse impulso de “empatar na ignorância” é típico de um país que cansou de pensar. Ou que tem medo do que o pensamento possa exigir. Como escreveu Zygmunt Bauman, “na sociedade líquida, a tentação do atalho supera o esforço do argumento”.
E o atalho está em toda parte.
No Senado onde a influencer é bajulada e a ministra é silenciada. Na timeline onde cada meme vale mais que uma apuração. Na Câmara onde piada vale mais que projeto. E até na roda de amigos, onde discordar com argumento já soa como provocação.
O Brasil, me parece, está com o cérebro rachado. Não porque pensa diferente — isso é saudável. Mas porque não consegue mais sustentar uma ideia até o fim. Porque interrompe tudo com “e o outro lado?”, como se o erro de um apagasse o erro do outro. Como se só houvesse dois lados — e a realidade fosse um joguinho de sinuca onde ninguém acerta, mas todo mundo bate.
Com Alex, tentei retomar o fio. Disse que criticar o Lula é legítimo. Que não existe blindagem para político. Mas que a justiça precisa julgar com critério — e que os critérios incluem dolo, repetição, alvo e efeito.
Ele respondeu mais calmo, mas ainda cético. “Sei lá, tá tudo zoado, mano. Tá difícil de confiar em qualquer coisa.”
E talvez seja aí que mora o problema. Não na discordância em si — mas no cansaço que ela provoca. No desânimo diante da complexidade. Na ânsia por atalhos. Na vontade de ter razão sem passar pelo esforço de entender.
Mas pensar exige pausa. Exige escuta. Exige que a gente olhe para o outro sem já ter a resposta pronta. E exige que a gente entenda que a liberdade de expressão não é só um direito — é uma responsabilidade.
E, sim, até a piada tem limite.
O que Leo Lins fez não foi um tropeço. Foi método. E quando o riso vira arma, a justiça precisa agir — não para censurar, mas para proteger. Não para podar a arte, mas para lembrar que toda arte tem contexto. E que o humor que bate sempre no mesmo já não é crítica — é covardia.
No fim, a conversa com o Alex terminou como um jogo embaçado: empate, mas com respeito. E talvez, nesse país rachado, isso já seja um gol.
Mas o que fica é o alerta: ou reaprendemos a pensar juntos — ou seguiremos trocando ideias por indignação instantânea.
E nesse jogo, ninguém vence. Nem no argumento. Nem na bola.
