Noite de quinta-feira (12/06). Véspera de frio, dia de promoção em floricultura, fila em restaurante, fila em loja de chocolates. Do lado de fora, a cidade girava seu pequeno ritual mercadológico. Do lado de dentro, eu fazia supino na academia quando ouvi:
— Pode me chamar de Neto.
Ele se apresentou assim, puxando assunto para revesar no aparelho, com um sorriso encostado num corpo castigado. Disse que já teve três AVCs. Que perdeu coisa demais, mas ganhou uma visão diferente da vida. Contou, com a tranquilidade de quem não precisa mais provar nada, que durante um dos AVCs teve uma experiência de quase-morte — ou como se diz entre os espiritualistas, uma experiência extracorpórea.
Foi parar, segundo ele, “lá em cima”. E, segundo suas palavras, “lá em cima é só amor”.
Mas não era um amor de discurso ou cartão. Era um amor que se sente na pele. Que não depende de nome, nem de sobrenome. Que não pergunta de onde você veio, com quem dorme ou como se identifica. Lá, disse Neto, “todo mundo é irmão”. E ninguém tem pressa de voltar.
Eu escutava tudo com a curiosidade de jornalista — mas também com aquele silêncio que só o espanto permite. Não pelo céu, nem pelas revelações. Mas por uma pergunta que ele deixou no ar, como quem arremessa uma pedra e desaparece:
— Mas, afinal… o que é o amor?
Ele não esperou resposta. E talvez nem quisesse. Mas a pergunta me seguiu. Me perseguiu. Como uma daquelas frases que não cabem no Google. E, justamente no Dia dos Namorados, me dei conta de que talvez a gente esteja comemorando algo que nem entende mais.
Porque o amor virou produto. Virou buquê com prazo de validade. Jantar com entrada, prato principal e selfie. Virou combo. Virou notificação. Virou performance.
Mas será que virou verdade?
E mais: será que todo tipo de amor cabe nessa vitrine? Será que todo mundo pode amar em paz nesse país? Ou só os amores com manual de instrução heteronormativo, histórico, aceito?
Hoje, vi casais sorrindo no feed. Beijos em preto e branco com trilha sonora romântica. “Amor da minha vida”, “meu parceiro de tudo”, “te amo além da eternidade”. Mas também vi o desabafo de um casal gay que, por segurança, preferiu não sair de mãos dadas. Vi uma mulher trans dizendo que não recebeu flores — só olhares de nojo no restaurante. Escutei um relato de um rapaz que apagou o post com o namorado depois de receber comentários ofensivos.
Aí me perguntei: quem pode amar publicamente neste país?
Porque o amor que a gente celebra no 12 de junho é lindo. Mas é seletivo. E enquanto uns beijam sob os olhos cúmplices da sociedade, outros ainda precisam olhar para os lados antes de tocar a mão de quem amam. A pergunta de Neto ressoava de novo: “o que é o amor?”
É o que se sente na pele — ou o que se esconde dela?
Segundo o IBGE, o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo. Projetos de lei seguem tentando censurar discussões de gênero nas escolas. A homofobia, criminalizada em tese, ainda é praticada em nome da “liberdade de opinião”. O amor, para muita gente, ainda é risco.
E eu, que queria escrever um texto leve, me vi nesse emaranhado. Porque é Dia dos Namorados, sim. Mas é também dia de se perguntar que tipo de namoro esse país celebra. E que tipo de afeto ele tolera.
Talvez Neto esteja certo. Talvez “lá em cima” seja mesmo só amor. Mas aqui embaixo, ainda é só julgamento.
E se o amor de verdade é aquele que se sente na pele — então que a gente lute para que ninguém precise se esconder dentro dela.
