Era madrugada quando os mísseis cruzaram o céu. Israel bombardeou o Irã. Foi direto: mirou centros de comando, matou generais, destruiu instalações estratégicas. Um ataque preventivo, dizem. Cirúrgico, dizem. Mas quando cirurgias envolvem lares, vizinhos, crianças dormindo e professores universitários, talvez a palavra mais apropriada não seja “cirurgia”. Talvez seja outra. Mas essa, parece que preferimos não dizer.
É curioso como o vocabulário muda de acordo com a geografia e a ideologia. Um ataque em Paris é terrorismo. Um ataque em Teerã é “operação militar”. Um bombardeio em Nova York é tragédia. O mesmo bombardeio em Gaza é “efeito colateral”. Parece que nossas palavras também carregam passaportes. E nossos sentimentos, vistos diplomáticos.
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Enquanto o mundo reagia com alertas, análises e posicionamentos ambíguos, o Brasil ensaiava mais uma dança com a incoerência. O mesmo governo que, com razão, denunciou os crimes de guerra em Gaza, agora soltou uma nota morna sobre o ataque a Teerã. Sem contexto. Sem contundência. Sem humanidade.
E a imprensa? Segue o roteiro de sempre. Um parágrafo para o ataque. Dois para os alvos. Nenhuma pergunta sobre os civis. Nenhuma dúvida sobre a legalidade. A narrativa já veio pronta: era necessário. Era estratégico. Era… aceitável?
Mas não é.
Não é aceitável quando uma teocracia como o Irã enforca mulheres por mostrarem o cabelo. Mas também não é quando um Estado supostamente democrático despeja bombas em áreas residenciais e mata cientistas à noite. Não é aceitável quando o Hamas ataca civis em Tel Aviv. Mas também não é quando Israel mata 15 mil crianças em Gaza. Não é aceitável que nossas indignações sejam seletivas, pautadas por alianças políticas, afinidades religiosas ou conveniências partidárias.
E aqui, no Brasil, nossa miopia moral ganha um agravante: o fanatismo travestido de fé.
É comum, especialmente entre evangélicos, ver manifestações públicas de apoio incondicional ao Estado de Israel. Bandeiras, camisas, orações, declarações inflamadas. O Israel moderno é visto como extensão direta do Israel bíblico — como se Netanyahu fosse uma espécie de Josué dos tempos contemporâneos, liderando o povo escolhido contra os filisteus de turbante.
Mas essa leitura, além de teologicamente equivocada, é historicamente perigosa.
Na Bíblia, “Israel” não começa como uma nação. Começa como um nome. Jacó, depois de “lutar com Deus”, recebe um novo nome: Israel. Seus filhos formam tribos, que formam alianças, que formam dois reinos — um dos quais, aliás, é destruído pelos assírios em 722 a.C.; o outro, por Babilônia em 586 a.C. O exílio vira símbolo, trauma e esperança. E é nesse contexto que profetas como Isaías, Ezequiel e Jeremias falam sobre retorno. Não a um Estado moderno, mas à terra que perderam. Não como projeto geopolítico, mas como esperança espiritual.
Ignorar isso é cometer anacronismo histórico — aplicar textos antigos a realidades modernas, como se nada tivesse mudado entre Nabucodonosor e Ben-Gvir.
É também instrumentalizar a fé — usar a Bíblia para justificar políticas de ocupação, de apartheid, de limpeza étnica.
E, talvez o mais grave: é negligência ética — calar diante da opressão porque o opressor carrega um símbolo que a gente aprendeu a venerar.
O Estado de Israel moderno, fundado em 1948 com apoio do Reino Unido e dos EUA, é um projeto político. Legítimo, como qualquer outro. Mas não é continuação do Israel bíblico. Não é cumprimento direto de profecia. Não é representação messiânica de nada. É um Estado-nação com forças armadas, com fronteiras contestadas, com aliados estratégicos — e com muitos pecados de guerra no currículo.
O problema é que parte dos evangélicos brasileiros leem o mapa como se fosse um salmo. E, assim, santificam tanques, canonizam drones e traduzem o direito internacional como se fosse parte do Antigo Testamento.
Essa cegueira não é só teológica. É também política.
Porque enquanto a direita celebra Israel como bastião do conservadorismo e da guerra santa, esquece que o mesmo Israel tem políticas de inclusão LGBTQIA+, sistema de saúde pública universal, legalização do aborto em alguns casos e vacinação obrigatória — tudo o que essa mesma direita combate aqui dentro.
E enquanto parte da esquerda defende Teerã como vítima de imperialismo, esquece que o Irã é uma teocracia opressora, que enforca homossexuais, silencia mulheres e persegue qualquer voz dissidente.
É como se o Oriente Médio fosse um espelho onde cada um vê o que quer — e ignora o que não convém.
Mas o mundo real não é um espelho. É um campo minado. E a moralidade não pode ser determinada por quem está segurando a bomba.
Hannah Arendt escreveu que “a verdade política raramente é absoluta; quase sempre é plural.” E talvez o que nos falte seja exatamente isso: pluralidade. Capacidade de dizer “sim, mas também”. Sim, o Irã viola direitos humanos. Mas também Israel. Sim, o Hamas é uma organização terrorista. Mas também o exército israelense comete crimes de guerra. Sim, o antissemitismo é um horror — e também é o anti-islamismo.
É possível defender o direito à existência de Israel e, ao mesmo tempo, denunciar a opressão sobre os palestinos. É possível condenar o terrorismo e condenar o apartheid. É possível criticar a omissão da imprensa e reconhecer sua cumplicidade sem cair no negacionismo.
Mas para isso, é preciso sair das trincheiras ideológicas. É preciso deixar de usar o Oriente Médio como desculpa para os nossos próprios complexos internos — sejam eles messiânicos, coloniais ou partidários.
Não se trata de escolher entre Teerã e Tel Aviv.
Trata-se de recuperar o que nos faz humanos: a capacidade de ver o outro. De sentir por quem sofre, mesmo quando ele não se parece conosco. De chorar por civis, mesmo quando a mídia não os menciona. De defender a paz, mesmo quando a guerra é sedutora.
Porque, no fim das contas, o que explode por aqui não é só a “neutralidade brasileira”. É o nosso senso de coerência.
E talvez a única bomba que ainda valha a pena acionar seja a do pensamento. Porque essa, sim, pode nos salvar de nós mesmos.