
O chamado Fórum Jurídico de Lisboa, conhecido comicamente como “Gilmarpalooza”, tornou-se o símbolo da degeneração institucional que o Brasil enfrenta: o anual “Baile da Ilha Fiscal”, protagonizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF-MT), Gilmar Mendes, é vendido como um “espaço para debates jurídicos internacionais”. Nada mais distante da realidade – é um misto de clube da alta casta política de verniz jurídico com vitrine de autopromoção.
Na última edição, em 2024, 2.435 pessoas pagaram para assistir a 337 palestrantes que se dividiram em 53 painéis durante 3 dias. Repito: 337 palestras em 3 dias. Com certeza um evento de gigantesca qualidade, onde até mesmo a ex-Casseta & Planeta Maria Paula Fidalgo palestrou como especialista. Mas chega de coadjuvantes: curiosamente, o astro do evento, Gilmar Mendes, está há tempos em uma cruzada contra o legado da Operação Lava Jato – a maior ação anticorrupção do planeta, e que foi um verdadeiro antídoto ao vírus da imoralidade que a política brasileira padecia. Moralidade pública, tudo o que ele detesta.
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Gilmar Mendes vai ao estrangeiro para cultivar relacionamentos pouco republicanos que beiram à promiscuidade institucional, justamente em um momento em que Portugal vive uma tentativa de remoralização da república lusitana. Em 2023, o então Primeiro-Ministro António Costa (do Partido Socialista de Portugal) renunciou ao cargo após seu ex-chefe de gabinete se tornar alvo da Operação Influencer, movida pela Procuradoria Geral da República de Portugal. A renúncia foi um gesto pessoal de respeito à ética pública. À época, declarou que: “A dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com qualquer suspeita sobre a sua integridade e boa conduta, e muito menos com a suspeita da prática de qualquer ato criminoso”. Igual ao que acontece no Brasil, não é mesmo? Onde ministros do STF se declaram suspeitos de julgarem casos patrocinados pelas suas esposas, parentes e filhos.
O caso do Gilmarpalooza chegou ao ponto de o deputado português André Ventura, líder do partido Chega, anunciar que o partido fará uma investigação própria sobre a influência, o patrimônio e as conexões do ministro brasileiro em Portugal. Segundo ele, trata-se de um esforço para romper com redes de proteção “aos amigos do governo Lula” no exterior — e garantir que Portugal não se torne cúmplice da decadência democrática brasileira. É esse o ponto em que chegamos.
Em 2015, o mesmo Gilmar Mendes exaltava a Lava Jato como freio ao “modelo cleptocrata” do PT e ao plano de poder do partido. Aplaudia a operação por enfrentar o domínio político sobre estatais como a Petrobras. Tudo mudou quando, em 2017, o foco das investigações alcançou o PSDB — partido que o indicou ao STF. Gilmar então passou a atacar a operação, sob o argumento de combater “abusos às garantias constitucionais”. Hoje, orgulha-se de ter ajudado a desmontá-la, chamando-a de “organização criminosa”. A incoerência não é falha: é método, “é ódio, é mau secreto, é bílis, é mistura de mal com atraso e pitadas de psicopatia”, como já diria seu companheiro da Suprema Corte à época, Luís Roberto Barroso, que esqueceu as diferenças e hoje é palestrante no evento.
O atestado de CID F60.2 (Transtorno de Personalidade Dissocial) de Gilmar é lavrado quando defende garantias fundamentais apenas quando interessa. Combate “prisões abusivas” se atingem aliados, mas ignora os excessos praticados por Alexandre de Moraes: prisões em massa sem individualização da conduta, delações forçadas e instrumentalização do “flagrante perpétuo” para justificar até mesmo o desvelamento do manto da imunidade parlamentar. Enfurece-se com o PSDB sendo alvo de Sérgio Moro, comove-se com a defesa de Lula pelo seu hoje colega Zanin, mas se cala diante das mães arbitrariamente separadas dos filhos, da morte em cárcere de Clezão e dos 43 idosos condenados – sendo que há em todas as fases, desde o princípio do processo até agora, precariedade na oportunidade de defesa e inexiste a possibilidade prática de recurso judicial.
Não basta os portugueses combaterem seus próprios vilões para restabelecer a ordem moral de seu país, agora também têm que enfrentar os nossos. Em vez de corrigir excessos e preservar avanços, o país caminha para a revogação completa do ciclo de combate à corrupção que marcou a última década. A destruição da Lava Jato não veio acompanhada de uma proposta alternativa de integridade — apenas da restauração de um sistema de impunidade sofisticado e blindado por malabarismo jurídico.
Não à toa, o acordo de reciprocidade entre a Ordem dos Advogados do Brasil e a Ordem dos Advogados de Portugal foi rompido, em um processo ainda maior de rompimento com os meandros da juristocracia brasileira. O rompimento foi unilateral e simbólico pela Ordem Portuguesa, representando um marco de independência da ex-metrópole das possíveis práticas coronelistas que se evidenciam nos tribunais ultramarinos brasileiros – em que invariavelmente advogados das partes se tornam juízes, vide Zanin – e que os lusitanos optaram que fiquem dessa mesma forma: para além mar.
O “Gilmarpalooza” é um retrato simbólico da degradação do nosso espírito republicano. Um fórum em que ministros de Estado se reúnem com acusados, aliados políticos, advogados influentes e empresários suspeitos para tráfico de influência velado – tudo isso distante dos olhos dos cidadãos brasileiros. Se o Brasil tivesse o senso de vergonha institucional que Portugal demonstrou, muitos dos personagens centrais desse teatro já teriam renunciado, recuado ou, no mínimo, se calado. Em vez disso, viajam a Lisboa, discursam sobre “Estado de Direito” e posam de reformadores da Justiça. O problema é que justiça não se reconstrói com cinismo. Reconstrói-se com verdade, com memória — e com coragem para romper os círculos de poder que hoje se aplaudem em auditórios europeus.
Por Rodrigo Marcial – Vereador de Curitiba