Tem gente que mistura cimento com suco de laranja. Joga tudo no mesmo copo, sacode as certezas, engole a trapaça com gosto e ainda bate no peito. Diz que é por amor ao país. Que é por liberdade. Que é pelo povo. Mas o gosto final é de concreto mal curado e fruta azeda. É disso que é feita boa parte da retórica política no Brasil de 2025: uma mistura indigesta entre ideologia, autoengano e brutal incoerência.
Na última quarta-feira (9), o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que aplicará uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados ao seu país. O tom é de castigo. A motivação? Uma colcha de retalhos: acusações falsas sobre o déficit comercial americano (quando, na verdade, os EUA têm superávit com o Brasil há 15 anos), ofensas ao Supremo Tribunal Federal, que segundo ele persegue cidadãos americanos, e uma defesa apaixonada de Jair Bolsonaro — tratado como mártir e perseguido político, quando na verdade é réu por tentativa de golpe de Estado.
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É uma carta que insulta as instituições brasileiras, ameaça a economia nacional e, de quebra, impõe condições explícitas: se quisermos negociar, temos que recuar no que somos. Temos que deixar de julgar um ex-presidente sob acusação gravíssima. Temos que mudar a forma como regulamos as plataformas digitais. Temos que nos ajoelhar.
E o que mais assusta não é a carta.
É quem aplaude.
Eduardo Bolsonaro, atualmente licenciado do mandato e em “viagem” pelos Estados Unidos, publicou vídeos agradecendo a Trump pela tarifa e pedindo sanções contra Alexandre de Moraes. O filho do ex-presidente age, em solo estrangeiro, como uma espécie de embaixador paralelo — contra o Brasil. E não está sozinho. Entre seus apoiadores, multiplicam-se os malabarismos teóricos, os memes de escárnio, os comentários cínicos de quem transformou o castigo em medalha.
É o Brasil da camiseta da Seleção que pede golpe com a bandeira de Israel.
É o Brasil da retórica anti-imposto que comemora tarifa estrangeira.
É o Brasil da soberania que só serve para xingar o STF, mas se curva à Casa Branca.
Quem vê de fora, não entende. Mas a lógica é interna. É a lógica de quem perdeu a noção do real. De quem trocou o pensamento pela performance. De quem só sabe raciocinar em 30 segundos de reels, com frases mastigadas, indignações recicladas e convicções autossuficientes.
A filósofa Hannah Arendt, ao falar sobre a banalidade do mal, alertava:
“O mal pode não ser radical, mas é extremo. E onde todos obedecem, ninguém pensa.”
É disso que se trata.
Estamos cercados de “obedientes”.
De gente que cumpre a ordem do grupo, mesmo quando o grupo já se voltou contra o próprio país.
E há quem tente justificar. Dizem que Trump só está “defendendo os interesses dos Estados Unidos”. Mas quem diz isso não é diplomata americano. É brasileiro. Deputado brasileiro. Influencer brasileiro. Vereador brasileiro — como Guilherme Kilter, de Curitiba, que usou o episódio para pedir o impeachment de Lula e de Alexandre de Moraes. Sim, o ataque veio dos EUA, mas o tiro virou argumento golpista interno. Uma confusão de soberanias, lealdades e neurônios.
Essa gente mistura cimento com suco de laranja.
Engole.
E oferece aos outros como se fosse vitamina.
E que fique claro: não se trata aqui de dizer que o governo Lula é perfeito. Já criticamos nesta coluna a postura ambígua do Brasil frente ao Irã, à Rússia, à crise em Gaza. Já questionamos os acenos externos, os silêncios constrangedores e os flertes ideológicos que custam coerência. O artigo Lula, Gaza e o espelho da contradição está aí para isso. O texto Israel, Teerã e o que os olhos não querem ver, nem as bocas querem dizer, também.
Mas há uma diferença brutal entre criticar o país por dentro e torcer contra ele de fora.
Lula respondeu à carta com firmeza de Trump. Disse que o Brasil não será tutelado. Reafirmou a independência dos Poderes. Devolveu simbolicamente o documento à embaixada americana — em silêncio, mas com dignidade. Foi um gesto institucionalmente forte.
Quem não respondeu foram aqueles que, outrora, gritavam “Brasil acima de tudo”.
Sumiram.
Ou pior: aplaudiram o castigo.
É como se o país tivesse sido capturado por um campo de lealdade invertida.
Onde ser patriota é gritar contra o STF, agradecer tarifa estrangeira e jurar lealdade a quem chama o Brasil de ameaça.
Onde soberania só existe quando convém.
Onde tudo é relativizado para não desagradar o mito — nem o de cá, nem o de lá.
A verdade é que a radicalização, em todas as suas formas, adoece o juízo. Torna impossível o pensamento complexo. Impede que se veja o óbvio. Transforma golpe em redenção, fake news em doutrina, sanção em bênção.
O Brasil está diante de um momento em que é preciso escolher entre dois caminhos: ou defende sua soberania com todos os riscos e contradições que isso exige, ou seguirá batendo continência para quem o despreza.
A escolha parece simples. Mas o país anda cansado de fazer escolhas óbvias.
Quem se diz patriota, que escolha o Brasil.
E não um presidente estrangeiro que impõe tarifa com dedo em riste.
Nem um ex-presidente nacional que responde por golpe e se cala quando o país é punido.
Muito menos um filho licenciado que milita no exterior contra o próprio Estado.
E para quem quiser entender o espírito do tempo, vale lembrar o verso de Vai Trabalhar Vagabundo, de Chico Buarque:
“Você que inventou seu país, esqueceu de inventar um povo.”
Tem muita gente confundindo papel de cidadão com papel de mascote.
E quem ama o país de verdade sabe: o suco de laranja vai na mesa.
O cimento, no chão.
Misturar os dois é só mais uma receita de desastre.