Lula não foi a Kiev. Mas, na última entrevista à CNN International, encontrou uma forma de se posicionar para o mundo — e para dentro. Falou com Christiane Amanpour, à distância e em inglês legendado, mas com a intenção de estadista. E ali, entre elogios calculados à ONU, críticas firmes ao trumpismo e uma defesa cerrada da soberania brasileira, emergiu o que talvez tenha sido seu gesto diplomático mais eficaz até agora.
Lula é um político que conhece o peso do silêncio e o efeito de cada vírgula. Na entrevista, usou ambos com precisão. Apresentou-se como negociador disposto ao diálogo, mas não à submissão. Rechaçou a ameaça tarifária dos EUA como um gesto unilateral e ofensivo, mas o fez com palavras, não com gritos. Foi firme, mas institucional. E ainda fez, com a habitual parcimônia, uma crítica à invasão da Ucrânia pela Rússia — um gesto simbólico para quem já foi acusado de relativizar o conflito.
Enquanto Donald Trump posa como imperador tardio e age como se pudesse tutelar o planeta a partir de redes sociais, Lula escolheu o terreno da racionalidade. Lembrou que os Estados Unidos têm superávit comercial com o Brasil. Que o Judiciário brasileiro é independente. Que qualquer sanção será respondida com reciprocidade. Que o país não aceitará ser tutelado por ninguém. Mas, acima de tudo, contrastou.
Trump representa o isolacionismo messiânico da nova direita global. Um nacionalismo de playground, temperado com ameaças de big tech, retaliações econômicas e delírios persecutórios. Lula tenta encarnar o pragmatismo possível num mundo em escombros. Um mundo onde os Estados Unidos não conseguem mais exercer oposição clara aos autoritarismos em ascensão, Putin virou pária, Netanyahu tornou-se símbolo de impunidade e Xi Jinping observa tudo em silêncio estratégico. Um mundo sem centro, sem freios, sem liturgia.
Nesse vácuo, Lula tenta ser o adulto da sala — mesmo que a sala esteja em chamas. Isso não apaga seus erros passados, nem anula a conivência silenciosa com regimes autoritários, nem o silêncio constrangedor sobre Gaza, nem a postura ambígua frente à Rússia. Mas aponta uma intenção. Um movimento. Um gesto de autoridade num tempo em que a autoridade virou meme.
Claro: essa imagem é frágil. O mesmo Lula que fala em negociação global posa ao lado de ditadores. O mesmo presidente que condena o unilateralismo de Trump integra um bloco onde Maduro, Ortega e outros autocratas são tratados como parceiros. Há ruído. Há contradição. Mas há também cálculo. E o cálculo de Lula não é ser a voz do Ocidente nem a vanguarda do Sul Global. É ser ponte. Ser fiador de uma certa ordem, mesmo que ela esteja por um triz.
Por isso a entrevista à CNN importa. Porque, num momento em que Eduardo Bolsonaro passeia pelos EUA agradecendo sanções contra o Brasil, e parte da oposição aplaude tarifas estrangeiras como troféus de humilhação nacional, Lula respondeu com um gesto civilizado. Disse: o país é soberano. A Justiça é independente. E a economia não será tratada como refém de narrativas estrangeiras.
Não é pouco. Num tempo em que parte da direita brasileira age como mascote de um ex-presidente americano que mal sabe onde fica Brasília, qualquer gesto de soberania vale ouro. Ainda mais vindo de um governo que, muitas vezes, falhou em se comunicar para além do próprio espelho.
A retórica, por si, não transforma o mundo. Mas pode recolocar o Brasil no mapa como país pensante. Como país que não se curva a ameaças — nem de dentro, nem de fora. E isso importa. Porque, quando a liturgia desaparece, o autoritarismo avança. E, quando a política cede ao delírio, a diplomacia vira farsa.
Lula ainda deve ao mundo muitos posicionamentos. Ainda deve à democracia global uma explicação clara sobre certos abraços. Mas, naquela entrevista, fez o que se espera de um presidente: representou o país. Com firmeza, com dados, com sobriedade.
O resto — os gritos, os vídeos, os panfletos de exílio — é espuma.
