Quando eu era molecote — quer dizer, adolescente, lá pelos 15, 16 anos — assistia uma série que me fisgava de um jeito diferente. Se chamava Arquivo Morto (ou Cold Case, em inglês), passava no SBT e misturava passado e presente com uma trilha sonora melancólica e justiça tardia. Recentemente, topei com ela no streaming. Dei o play. Dois episódios seguidos. E o que era nostalgia virou soco.
O primeiro episódio: uma jovem assassinada pelo namorado rico e abusivo. Raquete de tênis, violência escondida, irmão traumatizado. O segundo: uma explosão mata uma mulher prestes a testemunhar contra um tarado de rua. A polícia descobre, anos depois, que o culpado não era o tal homem — mas o próprio marido dela. Um bombeiro agressivo, controlador, obcecado por foguetes. O caso era frio, mas a misoginia era quente.
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A série me pegou pelo enredo, claro, mas o que me agarrou mesmo foi a personagem principal: a detetive Lilly Rush, interpretada por Kathryn Morris. Loira, voz baixa, mas uma presença que fazia tremer criminoso arrogante. Na cena que mais me marcou, ela encara o assassino:
“Você matou ela porque ela tinha opinião.”
E ele responde, nervoso, tentando desqualificá-la, dizendo que ela era insuportável, que era por isso que não casava. Ela rebate:
“Não casei porque não quis. E, se eu tivesse uma filha, ensinaria a ela a ser exatamente como eu.”
Aquela frase ficou na minha cabeça. Talvez por causa da Sil. Talvez porque, dias antes, a gente tinha participado de um encontro de casais na igreja — e, durante a palestra, o tema “o papel da mulher” me deixou inquieto. A combinação das duas coisas reabriu um arquivo antigo, que voltou a pulsar.
A fala da palestrante vinha embalada num tom doce, mas o conteúdo era duro: a mulher como submissa, como adjuntora, como costela. Baseada, claro, nas cartas de Paulo. E foi aí que tudo se misturou: a série, a Bíblia, a Sil. E eu percebi que esse texto precisava ser escrito.
Vamos devagar.
Sim, Paulo fala sobre a mulher ser submissa ao marido — mas isso não pode ser lido como se fosse um decreto de inferioridade. A palavra usada para “submissão” em Efésios 5, por exemplo, vem do grego hypotass?, que significa “ordenar sob”, no sentido de voluntariedade, e não de coerção. Paulo está escrevendo para uma cultura patriarcal, mas mesmo assim, diz: “Maridos, amem suas esposas como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela.” Ou seja, o modelo não é de domínio, mas de sacrifício mútuo. Não é hierarquia. É entrega.
E antes de Paulo escrever qualquer coisa, tem Gênesis.
Quando Deus cria o homem, o verbo usado é o hebraico yatsar, que dá a ideia de moldar como o oleiro faz com o barro. Mas quando cria a mulher, o verbo muda: banah, que significa construir, esculpir, arquitetar. É como se dissesse: “Aqui, vou caprichar.” Não é que o homem seja o rascunho e a mulher a obra-prima. Mas há poesia nessa diferença. Enquanto o homem foi “formado do pó da terra”, a mulher foi “construída” com propósito. E o propósito não é a submissão. É a parceria.
Na queda, sim, há uma ruptura. Mas antes disso, havia igualdade. E depois disso, houve redenção. Inclusive nas Escrituras. Débora foi juíza e líder. Rute foi leal e estratégica. Maria foi escolhida para gerar o Salvador. A mulher samaritana foi a primeira evangelista. As discípulas estavam no túmulo quando os discípulos fugiram. Jesus não ignorava as mulheres. Jesus não as silenciava. Jesus as via.
E é por isso que, quando eu olho pra Sil — minha esposa, mineirinha de Nanuque —, não vejo uma adjuntora no sentido de coadjuvante. Vejo alguém que está do meu lado. Que me corrige, me apoia, me sacode. Que é firme, bocuda quando precisa, sensível quando quer. Uma mulher inteligente que muitas vezes duvida da própria inteligência. Uma mulher que não nasceu pra obedecer — mas pra caminhar junto. E que, se tivesse vivido naquela série, teria olhado nos olhos do assassino e dito: “Você tem medo de mulher que pensa.”
E teria vencido o caso.
Sil me faz entender o que Adão deve ter sentido ao ver Eva pela primeira vez e dizer: “Essa, sim, é osso dos meus ossos, carne da minha carne.” Não era posse. Era poesia. Não era domínio. Era identificação.
O mundo insiste em reduzir a mulher a uma função. A Bíblia insiste em chamá-la de imagem e semelhança. A tradição tenta colocá-la no banco de trás. O Evangelho a convida à mesa.
Arquivo reaberto.
Caso encerrado.