Existe uma diferença tênue entre justiça e vingança — e ela costuma estar no tempo e na toga. Quando a lei demora, o povo grita. Quando a lei avança, o povo suspeita. E quando o Supremo Tribunal Federal decidiu proibir Jair Bolsonaro de usar redes sociais, monitorá-lo com tornozeleira eletrônica e restringir sua liberdade noturna, o país se dividiu como quem quebra um prato ao meio e tenta descobrir qual pedaço é mais útil: o que ainda serve ou o que ainda corta.
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, baseada na Ação Penal 2668 — onde Bolsonaro é réu por tentativa de golpe de Estado —, se ampara em evidências de que o ex-presidente, mesmo após o fim do mandato, continuaria tentando interferir no processo judicial. E o relatório do STF é incisivo: essa não é uma punição por opinião, mas pelas consequências reais de seus atos e discursos na arena pública. A Procuradoria-Geral da República aponta que Bolsonaro instrumentalizou o Estado para atacar o sistema eleitoral, disseminar mentiras, intimidar instituições e, agora, tenta pressionar o governo dos EUA para adotar sanções contra o Brasil em seu favor — com apoio do filho, Eduardo Bolsonaro, que atua do exterior como espécie de embaixador paralelo de uma narrativa golpista.
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É uma discussão espinhosa. Porque a liberdade de expressão é cláusula pétrea — mas nenhum direito é absoluto, sobretudo quando se torna arma contra o próprio Estado de Direito.
O problema é que, num Brasil onde os lados se odeiam mais do que se escutam, toda medida se transforma em combustível ideológico. A esquerda aplaude, a direita se revolta. Um vê justiça, o outro vê censura. E entre as duas trincheiras, há uma sociedade cansada de gritar para não ser ouvida.
Mas o que está em jogo aqui não é só Bolsonaro. É o precedente. É a pergunta incômoda: até onde o Estado pode ir para conter discursos perigosos?
Se a resposta for “até onde for necessário”, corremos o risco de naturalizar autoritarismos com boas intenções. Se for “não pode ir”, abrimos espaço para que toda ameaça institucional se esconda atrás de um avatar com a bandeira do Brasil.
A verdade é que o Brasil — e o mundo, sejamos honestos — ainda não aprendeu a lidar com a internet. As redes sociais deformaram o debate público, transformaram políticos em influenciadores e mentiras em método. Mas também serviram como megafone para denúncias reais, mobilizações populares e vozes antes silenciadas. Silenciar alguém ali não é só tirar um microfone — é interditar uma praça.
Sim, Bolsonaro usou essa praça como palanque, trincheira e arma. Mas quem decide que ele deve ser retirado à força dela? A Justiça, claro. Mas com quais critérios? Com que transparência? Com que controle?
O relator Alexandre de Moraes tem sido incisivo, destemido, firme. Mas também concentra em si um poder quase monárquico, que desperta o aplauso de quem o vê como escudo — e o medo de quem o enxerga como espada.
E não há democracia madura que dependa tanto de um homem só.
Bolsonaro, por sua vez, tenta vestir o figurino da vítima. Mas não foi censurado por rezar, cantar hinos ou amar a pátria. Foi punido por conspirar contra a alternância democrática, por instigar ataques às instituições e por arquitetar uma reação internacional com apoio do presidente dos EUA Donald Trump — que, por sua vez, flerta com o isolacionismo populista e acaba de anunciar tarifas de retaliação contra o Brasil.
Se o argumento for proteger a democracia, então é justo perguntar: qual democracia?
A que pune líderes com base em provas? Ou a que cala vozes antes que a Justiça possa julgá-las de forma definitiva?
O risco é que, em nome da ordem, a gente aceite o controle. E que o silêncio passe a ser uma nova sentença: a do verbo que já nasce condenado.
No fim, sobra o incômodo.
Porque não há saída fácil para um país onde liberdade se confunde com licença para agredir — e onde justiça parece sempre carregar o sobrenome da ocasião.
Mas uma coisa é certa: se um dia nossa democracia depender do silêncio forçado de um homem, seja ele quem for, talvez já tenhamos perdido a guerra que mais importa — a da razão contra o fanatismo.