
Uma audiência pública sobre segurança, saúde e políticas de drogas realizada nesta terça-feira (5) na Câmara Municipal de Curitiba se transformou, menos de 24 horas depois, no epicentro de uma crise política. Parlamentares da ala mais conservadora da Casa acusaram o evento de fazer “apologia ao uso de drogas”, convocaram coletiva, gravaram vídeos nas redes sociais e protocolaram um pedido de cassação contra a vereadora Professora Angela (PSOL), responsável pela proposição da audiência.
O estopim para a reação foi o conteúdo de materiais distribuídos durante o encontro, que abordavam práticas de redução de danos para usuários de substâncias psicoativas, como crack, LSD e cogumelos. Expressões como “conheça a substância” ou “use em companhia de confiança”, escritas no imperativo, foram apontadas por vereadores como incentivo direto ao consumo.
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“Se isso não for apologia, então eu não sei o que é”, afirmou o vereador Da Costa (União), autor do pedido de cassação. Segundo ele, um assessor de seu gabinete teria “esbarrado” no evento ao buscar café no Anexo II e se deparado com os panfletos. O parlamentar usou a tribuna para relatar experiências pessoais com usuários de crack, citar casos extremos de abandono de crianças e acusar a vereadora do PSOL de tentar “normalizar o uso de entorpecentes”.
A reação em bloco de parte dos vereadores de direita incluiu falas inflamadas, menções a tragédias urbanas e uma tentativa institucional de distanciamento. O presidente da Câmara, Tico Kuzma (PSD), reforçou que o evento foi aprovado conforme o regimento, mas enfatizou que a Casa não compactua com “apologia às drogas”. “A presidência não interfere no conteúdo dos debates, mas isso não significa que qualquer coisa pode ser dita sem consequência”, declarou.
A Prefeitura de Curitiba, por meio do líder do governo na Câmara, vereador Serginho do Posto (PSD), também se apressou em marcar distância. “A gestão municipal não teve qualquer envolvimento com a audiência”, garantiu.
Já a vereadora Professora Angela (PSOL) emitiu nota oficial no dia seguinte, em que defende o caráter democrático da audiência e denuncia a tentativa de silenciamento:
“Foi um encontro riquíssimo que contou com especialistas, ativistas e movimentos sociais da cidade que discutem os problemas gerados pelo proibicionismo”, afirmou.
“Propusemos um debate aberto, convidando representantes da Polícia Militar, OAB, Guarda Municipal, FAS e da Secretaria de Segurança Pública do Paraná. Fui eleita com essa pauta e muito me orgulha poder representar a luta antiproibicionista na Câmara. Não acredito que esse seja apenas um assunto de polícia, mas sim de saúde, direito, liberdade e autonomia.”
Angela também acusou o vereador Da Costa de interromper o evento de forma desrespeitosa, “invadindo o espaço com câmeras na mão, falando alto e interrompendo a fala de uma mulher indígena que compunha a mesa”.
“Todos os vereadores e vereadoras poderão sempre participar de qualquer audiência pública que o meu mandato propuser. Mas é inaceitável distorcer os fatos para gerar escândalo nas redes sociais. Não tolerarei mentiras nem manipulações dos nossos materiais para causar desinformação”, concluiu.
Redução de danos: política pública ou incentivo ao uso?
Na audiência, especialistas em saúde pública, pesquisadores e representantes da sociedade civil defenderam o direito à informação como ferramenta de cuidado. Os folhetos explicavam, por exemplo, que cachimbos metálicos podem causar ferimentos graves na boca de usuários de crack, ou que iniciar o uso de substâncias psicodélicas em ambientes seguros pode evitar surtos psicóticos.
“Falar sobre redução de danos não é incentivar o uso de drogas. É reconhecer que o consumo existe e que ignorar isso só piora os riscos”, disse uma das participantes durante a audiência, cuja íntegra está disponível no canal da Câmara e foi transcrita para registro oficial.
Apesar disso, vereadores como Indianara Barbosa (NOVO) e Eder Borges (PL) classificaram o material como “chocante”, “absurdo” e “digno de repúdio”. Para eles, o conteúdo fere a legislação ao sugerir, ainda que indiretamente, práticas que poderiam ser interpretadas como estímulo ao consumo de substâncias ilícitas.
Entre o debate e o linchamento político
A tensão evidenciada nas reações dos vereadores revela não apenas um embate moral, mas também uma disputa ideológica cada vez mais acirrada na política curitibana. Se por um lado a audiência foi aprovada regimentalmente e seguiu os trâmites legais, por outro ela foi usada como palco para discursos inflamados e movimentos de criminalização do debate sobre políticas públicas.
A Câmara Municipal, em nota oficial, afirmou que “não compactua com discursos que possam configurar apologia ao uso de drogas”, mas reforçou que as audiências públicas são “instrumentos legítimos de participação popular e expressão democrática”. O texto diz ainda que eventuais excessos serão analisados “à luz do Regimento Interno e da legislação vigente”.
O que vem a seguir?
O pedido de cassação da Professora Angela será analisado pela Corregedoria da Câmara. Caso avance, poderá culminar na abertura de um processo disciplinar. A Procuradoria Jurídica da Casa também deve se manifestar sobre a legalidade do conteúdo divulgado e da condução da audiência.
Enquanto isso, o episódio escancara os limites do debate público em tempos de polarização extrema. O tema das drogas, já sensível por natureza, foi instrumentalizado como munição política, transformando um espaço de escuta e construção coletiva em campo de batalha retórica.
A pergunta que fica: é possível debater políticas públicas de forma honesta em uma arena que prefere o escândalo à escuta?