O Brasil amanheceu com uma imagem que rodou o mundo: dezenas de corpos alinhados na Praça São Lucas, no Complexo da Penha. Moradores, exaustos e descrentes, arrastaram os mortos de uma área de mata até o asfalto — homens, jovens, meninos — empilhados diante das câmeras e do descaso. Foram 121 vidas interrompidas (incluindo 4 policiais) na operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro. O cheiro de pólvora ainda pairava no ar quando começaram as comemorações nas redes sociais: “vitória do bem contra o mal”, diziam alguns. Mas a cena — brutal, silenciosa, indecorosa — não parecia uma vitória. Parecia um espelho.
A cena é conhecida, mas nunca banal: corpos estendidos, mães segurando cartazes improvisados com nomes que o Brasil nunca aprenderá a pronunciar. O sol do Rio não brilha igual sobre a morte. Ele queima. Ilumina o que sobra — e o que sempre faltou.
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O governo do Rio chama de “sucesso operacional”. A imprensa estrangeira fala em “massacre”. E, entre esses dois extremos, o silêncio de um país que aprendeu a confundir ordem com extermínio.
Moradores dizem que os corpos vieram da mata, que muitos estavam amarrados, com tiros na cabeça. O governo fala em confronto, e a narrativa oficial se repete como um mantra burocrático: “suspeitos abatidos”. Mas, na esquina onde a polícia recua, fica o eco da pergunta que ninguém quer fazer — quantos daqueles homens tiveram outro tipo de encontro com o Estado antes do tiro?
Talvez nenhum. Talvez o primeiro uniforme que viram na vida tenha sido o da farda que os matou.
Nunca conheceram um professor público, mas conheceram a mira de um fuzil.
Nunca entraram num posto de saúde, mas foram atendidos por legistas.
Nunca tiveram saneamento, mas conheceram o jato d’água do caveirão.
O Estado chegou, enfim. Tarde, armado e surdo.
Há quem comemore. Quem veja nas estatísticas da morte uma espécie de catarse moral. Como se o país se purificasse ao preço da carne alheia. É o aplauso do medo travestido de coragem — a ilusão de que violência resolve o que a ausência criou.
Mas a história é teimosa. Ela nos lembra, vez ou outra, que cada corpo deixado na beira do morro é um fracasso coletivo, uma sentença contra todos nós.
Imagino outro cenário: o mesmo Complexo da Penha, mas com escolas integrais, professores bem pagos e alunos que aprendem inglês e programação.
Policiais que guardam a porta da escola, não a invadem.
Postos de saúde funcionando, água limpa, internet gratuita, ruas iluminadas.
Um lugar onde o correio entrega cartas — e o Estado entrega futuro.
Parece utopia. Mas é apenas o básico.
O que assusta é perceber o quanto o básico se tornou inimaginável.
A guerra ao tráfico virou rotina. E, na rotina, a barbárie encontra normalidade. Cada nova operação mais letal que a anterior — e, em nome da “segurança”, seguimos cavando nossas próprias covas morais.
Não se trata de romantizar o crime, mas de lembrar que ninguém nasce inimigo público. É o descuido — ou o desprezo — que fabrica o ódio.
Enquanto isso, os que aplaudem a morte seguem dormindo tranquilos, convencidos de que estão do lado certo da bala.
Mas não há lado certo numa nação que ensina seus filhos a celebrar cadáveres.
O Estado que não chega com lápis, chega com chumbo.
E quando o primeiro abraço é um tiro, não há cidadania possível — há só o eco de uma promessa rasgada, perdida no alto do morro.






