Há noites no Congresso que têm o silêncio coreografado de uma meia-confissão. Aquelas sessões arrastadas, cheias de discursos protocolados, que não deixam marcas no noticiário do dia seguinte — mas deixam marcas profundas na democracia.
A madrugada desta quarta-feira (10) foi exatamente isso: uma mudança silenciosa com impacto ensurdecedor.
Sem solenidade, sem cerimônia, sem o peso moral que uma decisão dessas exigiria, a Câmara aprovou o substitutivo de Paulinho da Força ao PL 2162/23. O texto evita a palavra “anistia”, mas produz um efeito quase indistinguível dela: reduz drasticamente as penas dos condenados pelo 8 de janeiro, altera o cálculo das condenações e reconfigura o impacto jurídico de crimes que atacaram a estrutura do Estado.
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E aqui é preciso precisão para explocar. Hoje, quem responde por vários crimes ligados ao 8 de janeiro — como golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa e associação criminosa armada — tem as penas somadas. Foi assim que Jair Bolsonaro chegou à condenação de 27 anos e 3 meses, fixada pelo STF.
O substitutivo aprovado muda exatamente esse ponto. Crimes diferentes deixam de ser somados. Passa a valer apenas a pena do delito mais grave, como se as demais condutas — igualmente fundamentais na engrenagem golpista — deixassem de existir para efeitos de punição.
Por essa nova lógica, se aprovada pelo Senado e validada pelo Judiciário, a pena de Bolsonaro poderia cair para algo em torno de 2 anos e 4 meses. Não é arranjo hipotético: é o cálculo divulgado publicamente pelos articuladores do texto.
E com uma pena tão baixa, abre-se margem para regime aberto, pena alternativa ou qualquer forma branda de execução.
Mas o impacto não para aí. O texto também altera dispositivos da Lei de Execução Penal, permitindo progressão de regime mais rápida mesmo para condenados por crimes cometidos com violência ou grave ameaça — desde que não envolvam morte ou lesão ao patrimônio.
Em outras palavras: para “resolver” o 8 de janeiro, reconfigura-se um pedaço inteiro da política penal brasileira. E isso acontece sem debate público real, numa madrugada de quarta-feira, com o país distraído.
Quando um projeto nasce para resolver um problema político específico, mas modifica estruturas penais inteiras que nem estavam na mesa de discussão, não se chama técnica — chama-se esperteza.
E o Brasil se acostumou à esperteza travestida de legalidade. A oposição chama o texto de “anistia branca”. O governo o apresenta como “reconciliação nacional”. No fundo, é tudo o mesmo: cada grupo molda o discurso conforme sua conveniência imediata.
Brasília não discute princípios. Brasília discute oportunidades.
O problema real está além do projeto. O país ainda não conseguiu lidar com o 8 de janeiro porque nunca conseguiu lidar com sua própria memória política.
Há décadas repetimos o mesmo ritual:
— abrandamos rupturas quando seus protagonistas voltam ao jogo;
— relativizamos crimes quando seus autores recuperam força política;
— flexibilizamos punições quando quem deveria pagar volta a ter amigos influentes.
A democracia brasileira sempre foi mais benevolente com quem a ameaça do que com quem a protege.
E agora repetimos o padrão. Antes de o país compreender totalmente quem financiou, articulou e executou o 8 de janeiro — antes de a sociedade absorver a gravidade do que foi feito — o Congresso corre para reduzir penas, reinterpretar condutas e diluir responsabilidades. É a política nacional tratada como caldeirão de água morna: não se aceita o choque térmico da verdade.
Quando a memória é maleável, a democracia também se torna maleável. E uma democracia que se dobra demais, cedo ou tarde, acaba quebrando.
A votação não encerrou o capítulo do 8 de janeiro. Ela inaugurou outro: o capítulo da disputa sobre o tamanho da culpa.
E quando um país perde a capacidade de medir culpa, perde também a capacidade de medir risco.
A madrugada de quarta-feira não foi um ponto final. Foi a abertura de uma pergunta que assombra — e que decidirá mais do que qualquer manchete da semana: quanta justiça o Brasil está disposto a sacrificar para não confrontar seus fantasmas?






