Acordei cedo de novo. Não por poesia, disciplina ou virtude. Acordei para ver se meu filho estava coberto.
Parece um gesto simples, quase ridículo aos olhos de quem nunca precisou ser casa para alguém. Mas, para quem é pai, é um ritual. Um eixo. A prova silenciosa de que o amor não é feito de grandes epifanias — e sim de cuidados repetidos, até que o cansaço vire vocação.
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E foi ali, naquela pequena ronda doméstica, que minha mãe apareceu. Não em sonho. Em memória.
Com meu filho aos 11 anos, começo a entender minha mãe com uma nitidez que não tinha antes. Hoje consigo enxergar a paisagem inteira: a força, a renúncia, o medo, a solidão, a coragem — e a ternura que atravessou tudo isso sem se quebrar.
Minha mãe nasceu em Viçosa do Ceará, no fim da década de 1950. A ditadura a encontrou ainda menina, estudando em colégio de freiras, enquanto o país fechava janelas e prendia vozes. Um dos presos foi meu bisavô — tirado de casa pelo Exército por ser sindicalista, levado descalço para uma cela gelada como método de tortura. É curioso como o Brasil gosta de congelar aquilo que mais deveria aquecer.
Ela cresceu filha de mãe solo. Uma mulher que lavava roupa, passava roupa, arrumava casas, cozinhava para famílias que tinham mais dinheiro e menos tempo, enquanto tentava dar às filhas um uniforme limpo e alguma esperança.
Com 16 anos, minha mãe começou a trabalhar na prefeitura. Logo depois, foi para São Paulo. Jovem, sozinha, migrante — e já marcada por aqueles rituais cruéis que o Brasil repete com os seus: fizeram-na fazer um curso para “perder o sotaque”. Como se dignidade tivesse fonética.
Apaixonou-se por um português 26 anos mais velho, já divorciado, já pai. Casaram-se, tiveram filhos, inclusive eu. Vivíamos na Grande São Paulo, até que o assalto dentro de casa — eu com quatro ou cinco anos — espalhou o medo pela nossa mesa. Hoje chamariam de síndrome do pânico. Na época, chamavam de exagero.
Fomos para o interior. Ribeirão Branco. Ali, sim, minha mãe floresceu como quem reencontra o próprio ritmo.
Era a mulher da Pastoral da Criança, a Tia Lúcia, andando de bairro em bairro, pesando bebês, anotando números, cuidando das mães, ensinando sobre vacinação, combatendo a desnutrição. Depois virou coordenadora paroquial, depois regional. E mais tarde foi conselheira tutelar. Depois dirigiu uma casa de acolhimento. Sempre criança. Sempre cuidado. Sempre uma luta diária contra a desigualdade que insiste em nascer de novo a cada esquina.
Não era perfeita. Ninguém que sobrevive a tanto é.
Mas a força… a força vinha de uma fonte que só a dificuldade fornece. Meu pai morreu em 1999, em um intervalo cruel de um mês entre o diagnóstico e o adeus. E eu vi, pela primeira vez, o que significa continuar de pé quando arrancam o teu chão. Ela continuou. Do jeito dela. Mas continuou.
Criou os três filhos sozinha. Sem parentes por perto. Sem rede de apoio. Sem manual. Com mais fé e coragem do que eu consigo medir hoje.
E é isso que me emociona: a mistura de fragilidade e aço. A doença cardíaca que a acompanha desde sempre — e que nunca impediu que ela carregasse o mundo nas costas. As conversas tímidas, mas cheias de inteligência. A sensibilidade política. A visão de mundo moldada por quem sentiu na pele o que é viver sem liberdade — e por isso valoriza cada centímetro dela.
Se hoje falo de direitos humanos, se cubro injustiças com indignação calma, se escrevo tentando equilibrar ternura e crítica, devo a essa mulher. Porque, antes de entender o Estado, eu entendi a minha mãe: alguém que viu a violência de perto e escolheu o contrário.
Se hoje cuido do meu filho com a rotina quase boba de ajustar um cobertor, é porque alguém fez isso por mim — mesmo quando estava exausta, assustada, solitária, ferida.
E se hoje escrevo sobre política, desigualdade, humanidade, é porque aprendi cedo que nenhum grande tema existe fora do cotidiano de uma casa. A vida começa nesse cuidado pequenino, que parece insignificante até que alguém deixa de fazer.
Minha mãe é o eixo da minha vida. A bússola. O chão. O lembrete diário de que o amor não se mede pelo que grita, mas pelo que insiste.
Se tenho algum acerto na vida, veio dela.
E, quando erro, volto para a mesma fonte: a sabedoria simples da minha mãe, que ainda hoje me ensina.






