Estava na sala de espera, rolando vídeos e fotos como quem passa o tempo enquanto o mundo gira do lado de fora, quando apareceu o vídeo da Viviane. Uma despedida. Um abraço tardio. A fala mansa de uma filha que finalmente conheceu o pai — e logo depois precisou enterrá-lo.
Parecia apenas mais um vídeo perdido no Instagram. Mas não era. A história me puxou pela gola da camisa, porque eu sabia exatamente o que tinha por trás.
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Há alguns anos, escrevi a série À Procura, investigando desaparecidos do Paraná — João Rafael Kowalski, Renato Brandão, Guilherme Caramês… histórias que, mesmo quando não encontravam corpo ou paradeiro, revelavam algo sobre nós: o desaparecimento como espelho moral de um país que some com gente como quem rasga recibo.
Foi depois dessa série que Viviane apareceu.
Viviane Rangel Wilkens, capixaba de Linhares, psicóloga vivendo há décadas nos Estados Unidos, carregava um buraco no peito desde 1973. O ano em que sua mãe, grávida, se separou de um rapaz acusado — injustamente, descobriríamos depois — de desviar dinheiro de uma obra na BR-101. Ele foi preso, depois solto, recusado, e a vida tratou de espalhar os dois como quem sopra folhas na ventania.
O nome que ela conhecia: Gilmar Carlos Rocha.
O nome real: Jomar Carlos Rocha.
Uma troca de sílabas capaz de esconder um homem por cinquenta anos.
Viviane me procurou em 2022. Veio pelos canais do Diário de Curitiba, por mensagens, por aquele fio de esperança que move quem já tentou tudo. Trouxe um arquivo com pistas, nomes, CPFs, suspeitas. Trouxe, sobretudo, um pedido simples e impossível: “me ajude a encontrar meu pai”.
Começamos por Curitiba, onde um dos Gilmars morava — ou tinha morado. Casa reformada, vizinhança nova, memória curta. Encontrei um processo, rastreei filhos, datas, sinais. Nada batia. Era um outro homem. Outra vida. Outro não-pai.
Ela quase desistiu.
Mas jornalismo tem dessas manias antigas: não aceita derrota sem antes virar a mesa ao avesso.
Depois de cruzar dados, revirar arquivos, puxar documentos, encontrei outra trilha: Nanuque, Minas Gerais — a cidade da minha esposa Sil, a terra que de repente virou ponto de ligação entre duas histórias que jamais deveriam ter se cruzado.
Um sobrinho meu foi até lá. Achou a casa, mas não a mulher que buscávamos. Era como se todos os fios se rompessem a centímetros do nó final.
Foi então que entrou na história o jornalista João Bosco Nascimento, da região de Belo Horizonte. Viviane o encontrou, financiou a ida dele até Nanuque, e ele fez aquilo que só o repórter presencial sabe fazer: perguntar no olho, bater de porta em porta, ouvir silêncios, farejar caminhos.
João achou o que faltava. Achou o cartório certo, o cemitério certo, o nome certo no papel certo. Achou, sobretudo, o detalhe que destrava a fechadura — a certidão que revelava os filhos, e com isso, o paradeiro do pai.
Não era Gilmar. Era Jomar.
Vivo.
Idoso.
Na Bahia, em Nova Viçosa.
Uma hora e meia de Nanuque. Meio século de distância da filha que não sabia o rosto dele.
Em março de 2023, João o encontrou.
Em abril, Viviane atravessou o oceano, pousou no Brasil e abraçou o pai pela primeira vez.
No vídeo que vi essa semana, ela se despede dele.
Jomar morreu em outubro de 2025, aos 75 anos.
E naquele vídeo havia gratidão. Pura, limpa, sem adjetivos.
“Procurei por você por toda a minha vida”, ela disse. “E Deus, em Sua bondade, nos concedeu o reencontro.”
Pensei no João. Pensei em mim. Pensei no velho sentido do jornalismo — esse que não aparece em prêmio nenhum, não dá clique, não rende palestra, mas muda uma vida. Às vezes duas.
Há filósofos que falam do “bem comum”, do “serviço público”, da “vocação cívica”. Mas a verdade é mais simples: jornalismo é devolver para alguém aquilo que nunca deveria ter sido tirado. Um nome, uma história, um pai, um caminho de volta.
A gente não encontra todos.
Mas, quando encontra um, o mundo todo parece entrar no eixo por um instante.
E, naquele instante, tudo faz sentido.












