O filme Terra Incognita, de Waleska Antunes, foi exibido no 13º Olhar de Cinema, realizado do dia 12 ao 20 de Junho de 2024, na cidade de Curitiba. O trabalho, assim como outros presentes no festival, esteve disponível online na plataforma Itaú Cultural Play, de acesso gratuito.
Frame do filme Terra Incognita (2023).
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Na obra audiovisual, íntima do gênero experimental, a realizadora insere imagens espaciais enquanto um texto corre abaixo. Esse texto, enunciado em primeira pessoa, fala coisas fantasiosas, fantásticas, não condizentes com a realidade palpável. O texto se trata de “Uma carta de Isaac Asimov para sua esposa Janet, escrita em seu leito de morte”, por David Berman, e as imagens são capturas de uma explosão solar no espaço. Ora o fundo é preto, potencializando a imensidão de uma tela de cinema e as imagens ali escolhidas para serem projetadas, ora o fundo é branco, inundando os espectadores e suas respectivas poltronas com uma forte claridade, na ausência cromática. O viés experimental acentua a sensação de um vazio, um oco, seja pela supressão ou pela acessão. Silenciosamente ruidoso, a vibração sonora nos ambienta em atmosferas de escavações intergalácticas.
As imagens incubidas a nós de criar são das mais absurdas: carneirinhos de celofane no quintal e cardeais parecendo gotas de sangue. Tal sensação de abstração toma a tela, toma a sessão, tal hora nem sei se estou entendendo, se me entendo, que bulhufas está a ser dita ou o que estou a pensar sobre isso. Essa abertura é dada através de um texto fantasia, e de uma imagem quase estática em nosso mundo de cortes rápidos, ferozmente dinâmico. Essa falta de um clímax, propriamente dito na lógica comum narrativa, nos coloca em estado de observação constante, nos fazendo atentar para algo que se espalha ao decorrer do trabalho. Ao final, resta apenas silêncio e contemplação, um vazio mais oco ainda.
Divagações interplanetárias, não aéreas. Rastreando sensações incabíveis em um satélite preto, branco e cinza, da imagem do frame granulam-se percepções críveis, diegeses impossíveis. São mapas de um cosmo outro, visagens exploratórias e voyages siderais, brincam de pique-esconde em nebulosas. Velocidade, distância, um globo, altitudes, latitudes.
Pude conversar com a diretora do filme e realizar a entrevista que aqui transcrevo. Waleska Antunes é Bacharel em Cinema e Vídeo pela Universidade Estadual do Paraná e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Faz tradução audiovisual e é curadora do Festival Ecrã, com foco em cinema experimental.
Entrevista com Waleska Antunes
Foto da diretora.
Noah Mancini: Como nasce Terra Incognita?
Waleska Antunes: O Terra Incognita nasceu como uma espécie de mistério. Eu sempre fui uma pessoa bastante curiosa e bastante interessada em coisas que muitas vezes a gente não consegue entender muito bem. Sei que pode parecer um pouco pedante falar isso, lançar essa aura de mistério em uma coisa, mas uma das principais coisas que me interessa na arte é elas serem coisas questões misteriosas, suscitarem sentimentos ou sensações que não sabemos muitas vezes como explicar, e não saber como explicar também um grande mistério. Então o Terra Incognita foi um mistério para mim, que primeiro apareceu como uma revelação e depois como um mistério. Revelação porque essas coisas essas imagens me acharam, eu sempre fui uma pessoa muita aficcionada pelo espaço como fronteira do ser humano e enquanto uma coisa que a gente não consegue mensurar, ter uma dimensão de como é o espaço, é uma coisa muito difícil da gente conceber enquanto pessoa. E é uma coisa que sempre me intrigou, porque os relatos que temos do espaço, as noções que a gente tem de espaço são noções filmadas, ou ficcionais ou representações completamente mecânicas. A gente tem as imagens dos telescópios, coisas que o ser humano tem interferência até certo ponto. E depois quando elas registram as imagens, a interferência cai quase a zero.
Então em uma tarde eu li uma reportagem sobre uma grande explosão solar que houve, e tinha dois registros, que são os dois registros que estão dentro do Terra Incognita. Apesar de ser um filme que só tem duas imagens, elas são a mesma imagem mas com o registro de ângulos completamente diferentes. E eu achei aquelas imagens muito bonitas, porque era uma explosão solar e você só consegue ver o espaço. E eu pensei: “Nossa, isso é uma coisa extremamente bonita, mas o que eu vou fazer com isso no final das contas?” É uma imagem do espaço, não existe muito o que fazer. E eu fiquei me perguntando sobre aquela imagem, sobre essas imagens. Como pode uma máquina, uma câmera registrar algo dessa magnitude, uma coisa tão gigantesca e a gente ver num registro tão pequeno, ou em uma tela tão pequena. E eu deixei essas imagens com o tempo guardadas e num outro momento eu tava lendo o texto de um músico que também foi poeta, que é o David Berman, escrevendo uma espécie de carta para sua esposa e essa pessoa estivesse no seu leito de morte. E ressoou muito comigo porque a mesma sensação que eu tive vendo as imagens eu tive com o texto. Daí eu pensei: “Essas duas coisas estão querendo me dizer algo misterioso que eu não sei o que é, o que será que acontece se eu juntar essas duas tensões de mistério, se eu juntar esses dois mistérios, o que acontece?”. Então o Terra Incognita surgiu daí, de uma tensão entre um espaço e as coisas gigantes e incompreensíveis que são o espaço, e as coisas que são grandes e incompreensíveis na terra, que é justamente a existência. Eu sei que parece uma coisa extremamente prosaica, mas foi um pouco por isso, foi algo que me movimentou muito mais pra saber o que a junção dessas duas coisas tinham a me oferecer, e colocar elas pra ver, enquanto um cinema de fato experimental, foi um experimento, e um experimento da ordem do incognito.
Se a expressão Terra Incognita era uma expressão utilizada por exploradores para identificar todas as terras que a gente não sabe, ou territórios imaginários, ou territórios a serem descobertos, quando eu fiz esse filme eu também quis tentar entender, quis entender se eu conseguia fazer um filme, que parecia ser uma tarefa extremamente difícil
E às vezes a gente tende a ficar se questionando se a gente quer ou não fazer um filme, ou questionar os meios de produção desse filme, ou ter ou não ter dinheiro para fazer um filme. Então eu pensei: “Eu tenho uma imagem, eu tenho um texto, vou colocar eles dois juntos e descobrir o que eles tem a me dizer. Se essas imagens estão vivas e elas querem falar comigo, o que elas querem falar?” E eu descobri nesse processo todo que era um grande experimento. E quando a gente o faz, a gente quer trabalhar com esse mistério, a gente descobre nele um grande experimento, acho que isso é a grande magia do cinema.
Noah Mancini: De que maneira você acha que o gênero experimental estabelece formas comunicativas no cinema? Quais são os disparadores mais significativos que você enxerga nele?
Waleska Antunes: Eu acredito que o cinema experimental ou o gênero experimental muitas vezes tem um público de maneira geral. E eu não estou falando isso só do “espectador médio”, por assim dizer. Mas digo das pessoas que consomem cinema, desde o espectador até pessoas que estão dentro da universidade, pessoas que trabalham com cinema, trabalham com curadoria, trabalham com arte de maneira geral, geralmente veem a palavra experimental ou a palavra cinema experimental com muita ressalva. Por que isso? Eu acho que muitas vezes o gérmen dessa questão é porque o cinema por si só é uma arte narrativa. E muitas vezes há uma necessidade do público de ter um controle dessa narrativa, então a gente quer que as coisas tenham um começo, um meio e um fim, e que essas coisas nos contem o que aquela imagem está querendo dizer. Então o filme vai lá, te pega pela mão, e te conta uma história. E o cinema experimental muitas vezes ele não faz isso, ele faz isso de uma maneira mais ardilosa. Porque ao invés dele te dizer “eu vou te contar uma história”, ele vai lá e diz: “o que é que você acha que estou te contando?”. Então acho que o grande disparador, o grande interesse, uma das grandes virtudes do gênero experimental como um todo é essa capacidade de você poder oferecer um tipo de narrativa, você querer contar algo, de uma maneira que não é convencional, de uma maneira que não necessariamente precisa ter um começo, meio e fim. Pode ser que você queira contar uma coisa trivial, pode ser que você queira mostrar uma paisagem por horas e horas em uma câmera estática. Mas não significa que no meio dessa paisagem estática não estejam acontecendo coisas como em um filme narrativo. Pode ser que você queira contar durante quatro horas com textos na tela, histórias de outras pessoas. E não significa que mesmo assim por esse filme ser composto só de textos, só de palavras, não significa que ali não haja um filme, né? Então eu acho que a maneira como o cinema experimental tensiona é mais ardilosa que o cinema comercial. Muitas vezes a gente está acostumado, tanto pela mídia quanto pelos estudos, a assumir que só existe um tipo de cinema possível, um tipo de narrativa possível, ou um tipo de estrutura narrativa possível. A gente sabe que existe um cânone estabelecido, por mais que a gente procure ficar longe dele de alguma forma, a gente sabe que é um cânone estabelecido. O cinema experimental tem como forma comunicativa primordial também a narração, mas não necessariamente a narração que conte algo. Ele te pede que você se engaje e crie sua própria experiência sobre a obra, então acho que talvez ele demande muito mais do público do que às vezes o cinema comercial ou que está dentro do cânones. Para além da narração e do engajamento, ele exige do público, ele exige que o público se posicione diante da obra. Então pra mim essa é a grande mágica do cinema experimental, que há sempre uma história a ser contada, mas não necessariamente a história que você espera que seja contada.
Noah Mancini: Como você sente a receptividade do circuito de cinema para obras audiovisuais experimentais?
Waleska Antunes: Eu ainda vejo que há uma certa ressalva. Falando enquanto realizadora e espectadora, acho que há uma ressalva muito grande com a palavra experimental como um todo. É perceptível que quando você coloca a palavra literatura, ou a palavra cinema, ou a palavra teatro, ou a palavra música, sozinhas, elas têm um peso. Mas se você colocar a palavra experimental junto, você vai ter arte experimental, literatura experimental, teatro experimental… e só a adição dessa palavra faz com que o público tenha uma espécie de reserva, significando que o cinema experimental ou a arte experimental precise ter um arcabouço teórico para ser consumida. Eu acredito que o cinema experimental é bastante democrático, porque não significa que você precisa ter os melhores equipamentos para fazer os melhores filmes do mundo. Os melhores filmes experimentais surgiram dos anseios das pessoas, da vontade de fazer filmes, as grandes obras e os grandes cineastas do cinema experimental surgiram desses anseios, de quererem experimentar e de se colocarem à prova. A ressalva do público é por muitas vezes não entender o que é o cinema experimental e isso acontece nos próprios circuitos de cinema, e isso tô falando de circuitos comerciais e de festivais um pouco maiores, as pessoas ainda veem com muita reserva.
Mas agora falando do outro lado, eu sou curadora de um festival de cinema experimental no Rio de Janeiro, chamado Ecrã. E esse ano curiosamente a gente teve mais de 800 inscrições de obras experimentais, e isso vai desde jogos a filmes curta e longa metragens, videoartes, instalações, performances de maneira geral. Então não dá pra dizer que o cenário não é frutífero. Está sendo produzida muita coisa não só no Brasil como no mundo inteiro, por pessoas que querem produzir e botam muito dos anseios e vontades por querer fazer um experimento, tornar um filme o experimento ou fazer da arte um experimento. Acho que se produz muito cinema experimental, mas se consome muito pouco. Por conta dessa reserva que essas pessoas tem com a palavra, essa reserva leva à falta de interesse, e a falta de interesse leva à falta de conhecimento. Então eu acho que o cinema experimental dentro dos cinemas sempre há coisa produzindo, há coisa com dinheiro, há coisa sem dinheiro algum, há pessoas com um celular produzindo, há pessoas com câmeras maravilhosas produzindo. Então o cinema experimental é democrático, e você pode pensar nele também fora do espaço do cinema. Você pode pensar em produzir cinemas para museus, para vídeo mappings, todos esses cinemas que se propõe a tentar subverter um pouco dessa lógica narrativa, ou comercial, de toda forma eles são experimentos válidos. E acho que isso o torna interessante. Então tá sendo produzida muita coisa, tem muita gente fazendo, porém às vezes o que falta é um pouco de desprendimento, as pessoas se desprenderam de vários preconceitos, de noções pré concebidas do que é cinema. Depois que você começa a se perguntar o que esse filme está querendo dizer, você começa a pensar que há uma outra possibilidade de cinema, e há outras coisas que podem ser feitas e podem ser tão bonitas quanto o filme extremamente narrativo que esteja passando no cinema. Já no âmbito de programação, um filme que seja um ponto fora da curva, seja interessante para instigar o interesse do público, acho que é isso que as pessoas deveriam ver com outros olhos. Para mim acho que muita coisa está sendo produzida, mas cabe às pessoas terem esse desprendimento, de pensar que o público pode ter interesse por isso. E acho que a função primordial do cinema ou de grandes festivais ou de mostras ou de ciclos de cineclubes é instigar o público e promover a difusão. E quando você consegue ver valor em filmes que se adequem a tipos de linguagem pré-concebidas, talvez seja uma das grandes tarefas do cinema, você instigar, até mesmo sendo uma arte do mistério, a gente tenha que talvez se confrontar com essas obras experimentais, misteriosas, para ver o cinema narrativo e comercial de uma maneira diferente e até um pouco mais valiosa.